EXISTE (MUITA) VIDA EM “MARTE UM”.
Por Celso Sabadin.
E, de repente, todos estão falando de “Marte Um”. Tem de falar mesmo! Pelas bordas, sem muito alarde, desembarca nos cinemas brasileiros um daqueles filmes que têm o poder de lavar a alma da gente, ao mesmo tempo em que se insere como obra representativa de todo um momento histórico – e histérico – nacional.
Com a marcante simplicidade realista típica da sempre ótima produtora mineira Filmes de Plástico, “Marte Um” tem a honra de nos apresentar a família Martins. O pai, Wellington (Carlos Francisco, de “Bacurau”), é um respeitado e respeitador porteiro/zelador de um edifício de classe alta daqueles cujos moradores reclamam que a Revista Veja chegou fora do plástico. A mãe, Tércia (Rejane Faria), é o esteio racional do grupo, aquela que faz e refaz todas as contas necessárias para tentar fechar o orçamento doméstico. A filha quase adulta, Eunice (Camilla Damião), quer bater asas rumo à liberdade, enquanto seu irmão Deivinho (o garoto Cícero Lucas, um achado), bom de bola, pode salvar as finanças da família se conseguir uma vaga para jogar no Cruzeiro… mas os sonhos do menino vão muito além do azul-céu do time do coração de seu pai.
São quatro personagens fascinantes e repletos de carisma – que se juntarão a alguns outros mais – unidos por laços de afeto num momento dos mais trágicos da vida brasileira: os anos Bolsonaro. Contudo, um dos grandes méritos do filme é não abordar esta questão de forma panfletária ou meramente discursiva. Pelo contrário: a hecatombe simplesmente paira sobre o cotidiano do grupo como se ninguém a notasse, como se um estado letárgico da população ignorasse totalmente o perigo, ou não acreditasse nele. Como se o novo governo que se inicia exatamente no momento em que o filme também começa fosse algo muito distante e sem significado para aquelas pessoas acostumadas a lutar diariamente pela sobrevivência.
Uma cena em particular chama a atenção neste sentido: Wellington, almoçando com um colega de serviço, assiste pela televisão à cerimônia de posse do novo presidente. Não diz uma palavra, não esboça um gesto sequer, nada comenta com o amigo, mantendo um olhar de total indiferença diante do caos. Simplesmente não percebe. Ou não se importa.
A vida passa pelos Martins enquanto os Martins passam pelas dificuldades da vida como se não existissem as câmeras da Filmes de Plástico, esta produtora que tem como marca registrada conseguir estampar na tela a magia do invisível. Que extrai da mais autêntica simplicidade cotidiana as emoções mais profundas.
“Marte Um” é o segundo longa do roteirista e diretor Gabriel Martins, e o primeiro solo, sem a parceria de Maurilio Martins, com quem fez “No Coração do Mundo”. Entre seu curtas estão “Nada”, exibido na Quinzena dos Realizadores de Cannes, em 2017, e “Dona Sônia Pediu uma Arma Para Seu Vizinho Alcides”, exibido no Festival de Clermont-Ferrand.
O produtor do filme, Thiago Macêdo Correia, lembra que Gabriel o procurou com a ideia de “Marte Um” quando o país ainda estava sob o comando de Dilma Rousseff, um período de prosperidade, e incentivo e investimentos na cultura. “O filme foi produzido graças a um fundo público de 2016 voltado para diretores negros e narrativas de temática negra com o intuito de levar às telas cineastas de grupos minoritários. Obviamente, esse fundo não existe mais. Rodamos o longa em outubro de 2018, durante as eleições, o que acabou influenciando também a narrativa. Não tínhamos ideia do que viria depois”, conclui.
O filme teve sua estreia mundial no Festival de Sundance, em janeiro passado e sua primeira sessão no Brasil aconteceu no Festival de Gramado, sendo premiado como Melhor Filme pelo Juri Popular, Melhor Roteiro, Melhor Trilha Musical e Prêmio Especial do Júri. Ainda foi exibido em 35 festivais internacionais, ganhando prêmios de melhor longa no OutFest, no Black Star e no San Francisco Film Festival.
Estreia nesta quinta, 25/08, nos cinemas de Belo Horizonte, Contagem, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Palmas, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Rio Branco, Goiânia, Salvador, Vitória, Aracaju, João Pessoa, Manaus, Niterói, Afogados da Ingazeira, Balneário Camboriú e Ribeirão Preto.


