PRECISAMOS FALAR SOBRE “KEVIN”.
Por Celso Sabadin.
Já abordamos o assunto aqui, em outras ocasiões, mas vale a pena retornar a ele: desde que Robert Flaherty, exatamente 100 anos atrás, foi acusado de manipular seu documentário “Nanook” com encenações ficcionais, os estudiosos e acadêmicos vivem tentando definir as fronteiras entre os gêneros documental e ficcional. Sem sucesso claro, pois tais fronteiras não existem. E, caso existam, são irrelevantes.
Muito mais recentemente, novos filmes brasileiros vieram para bagunçar ainda mais a questão, casos de “Lavra”, “O Rio de Janeiro de Ho Chi Min” e – a partir deste próximo 3 de novembro – “Kevin”.
Com direção e roteiro de Joana de Oliveira, “Kevin” posiciona a própria cineasta como protagonista deste seu filme que a segue em sua viagem para Uganda, onde visita sua grande amiga que dá título ao longa. Amiga protagonizada pela própria Kevin, claro.
Parece confuso? Nem tanto. A questão é que – com muita habilidade – a narrativa flerta diretamente com a ficção, enquanto o material promocional da obra o divulga como documentário.
Em um primeiro momento, acreditamos estar diante de um longa produzido dentro do chamado “cinema de fluxo”, estilo estético contemporâneo muito bem recebido em festivais, no qual a profunda e lenta observação da vida se mescla com a construção de personagens semi-ficcionalizados, gerando um forte tom documental à obra.
Aos poucos, contudo, “Kevin” pende mais para a ficção – embora as realidades das protagonistas fiquem claramente estampadas na tela – enquanto sua divulgação/rotulação como “documentário” contribui ainda mais para a dissolução das fronteiras entre os gêneros.
A pergunta que fica é: até que ponto tal rotulação é de fato necessária? Particularmente, acredito que cada vez mais a distinção entre os gêneros cinematográficos é desnecessária anacrônica neste contexto pós-moderno de “tudo junto e misturado” em que vivemos.
Criados principalmente pela necessidade da indústria cinematográfica norte-americana de empacotar seus produtos em caixinhas facilitadoras de ações de marketing, os gêneros cinematográficos seguem o mesmo caminho das fichas telefônicas, dos ascensoristas e do fax (e talvez da crítica cinematográfica): a extinção, por decurso de prazo.
O melhor a fazer então é mergulhar de cabeça na viagem – física e simbólica – que Joana empreende à África e às suas memórias afetivas. A espontaneidade, o carinho e a sororidade que transbordam desta relação de amizade encontram na estética contemplativa do longa o seu melhor veículo e a sua mais transparente expressão, transformando “Kevin” num bem-vindo instante de delicadeza e afeto que contrasta positivamente com o atual momento bélico em que vivemos.
Seja ficção, seja documentário
Com roteiro de Laura Barile, com a colaboração de Tatiana Carvalho Costa, e da própria diretora, “Kevin” chega aos cinemas dia 3 de novembro.

