O ABSURDO ENDÊMICO BRASILEIRO EM “CARVÃO”.
Por Celso Sabadin.
Enquanto grandes fornos transformam vagorosamente madeira em carvão, no anonimato do isolamento do interior brasileiro, alguns dos mais caros e profundos valores da alma humana também estão virando cinzas. Em silêncio, lenta e dolorosamente.
O pequeno núcleo familiar formado por Irene (Maeve Jinkings, de “O Som ao Redor”, “Boi Neon”, “Aquarius”), Jairo (Romulo Braga, de “Elon Não Acredita na Morte”, “Valentina”, “Desterro”) e pelo garoto Jean (Jean Costa) não apenas vivencia como protagoniza esta queima.
A perversa possibilidade de transformar um pedaço da família em ação lucrativa – proposta, aliás, vinda de quem deveria cuidar das questões da saúde – desestabiliza de forma definitiva as relações humanas já há tempos abaladas.
Não se deve saber muito de “Carvão”, antes de vê-lo. Basta verificar que se trata de um filme que parte do pressuposto que “não existe mais absurdo no Brasil”, segundo palavras de sua roteirista e diretora, Carolina Marcowicz, em entrevista à Revista Variety.
“Ouvimos nosso presidente dizer que preferiria ter um filho morto a um filho gay. Ouvimos o executivo da maior seguradora de saúde dizer que foram orientados por seus CEOs a deixar as pessoas morrerem durante a pandemia porque ‘morte é alta hospitalar`. Minha tentativa é compreender como chegamos a este ponto”, prossegue a cineasta.
A exposição das aberrações, contudo, não seguirá pela facilidade do explícito. O impiedoso e endêmico absurdo brasileiro é retratado em “Carvão” dentro de uma narrativa dramática que percorre com densidade e estranhamento os caminhos do terror psicológico, valorizando cada silêncio, cada olhar e cada tempo.
O filme foi rodado em Joanópolis, interior de São Paulo, próximo ao local de nascimento da diretora, mas poderia ser – e representa – qualquer canto do país. Ela diz conhecer bem esse ambiente rural e retrógrado. “Lá, vivenciei tudo o que uma pequena cidade conservadora pode oferecer: pessoas cuidando da vida umas das outras, famílias unidas pelo fato de que `a família deve ficar unida´, casamentos onde os casais quase se odiavam (mas como é vergonhoso ser solteiro, vamos manter o status quo!). E claro: você pode ser um assassino, mas por favor não seja gay.”
“Carvão” é o primeiro longa de Carolina Markowicz, que escreveu e dirigiu seis curtas selecionados para cerca de 300 festivais e que colecionam em torno de 70 premiações, em todo o mundo. Ela também é cocriadora da série Netflix “Nobody is Looking”, vencedora do Emmy Internacional 2020.
Coproduzido por Brasil e Argentina, o longa estreia em 3 de novembro em São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Aracaju, Manaus, Belo Horizonte, João Pessoa, Curitiba, Porto Alegre, Maceió, Recife, Salvador, Brasília e Ribeirão Preto.

