O VERDADEIRO TERROR BRASILEIRO EM “PROPRIEDADE”.

Por Celso Sabadin.

Como diziam os antigos locutores esportivos, “ao apagar das luzes” de 2023, ainda há tempo para uma nova polêmica no cinema brasileiro. Estreou nesta quinta-feira, 21/12, o premiado “Propriedade”, um drama social/suspense/terror bastante comentado no circuito dos festivais, por onde passou.

Teresa (Malu Galli) é uma mulher da classe alta pernambucana que – não sem motivo, como é mostrado na ótima cena inicial – tem síndrome do pânico. Após muita insistência do marido Roberto (Tavinho Teixeira), ela aceita passar uma temporada na propriedade rural da família. Também, não por acaso, um antigo engenho de cana.

Lá chegando, o casal logo percebe – da pior maneira possível – que há uma insuperável tensão entre os trabalhadores da fazenda, ali mantidos em condição análoga à escravidão. Como não podia deixar de ser, a conhecida e secular luta de classes terá de explodir. Também, da pior maneira possível.

A polêmica que se estabeleceu em torno de “Propriedade” se relaciona com as altas doses de violência destiladas na obra. Estruturalmente, o filme dialoga diretamente com o gênero terror de maneira tão direta que participou de eventos nacionais e internacionais de horror e cinema fantástico. É coerente para quem vive em um país em que o descaso e o desrespeito pelo trabalhador são mais aterrorizantes que qualquer zumbi ou invasor alienígena. No Brasil, o terror não vem do espaço.

Da mesma forma, a discussão sobre a violência intensa e gráfica do longa assume ainda contornos que extrapolam as próprias questões estéticas e/ou cinematográficas. Trata-se de uma ação ou de uma mera – e talvez justa – reação? Seria um cinema meramente exploratório ou um cinema denúncia? Particularmente, vejo “Propriedade” como necessário e representativo de toda uma cultura, na medida em que retrata uma situação há séculos por aqui enraizada, e viciada em uma continuidade viciosa que parece infinita.

Esta aberração automobilística conhecida como S.U.V. compondo a representação simbólica do apartheid nacional é não menos que genial.

Segundo Daniel Bandeira – roteirista e diretor de “Propriedade” –  a princípio o argumento foi desenvolvido como um exercício formal sobre enclausuramento. Mas a ideia passou a receber contornos políticos ao perceber, a partir de 2010, um país mais polarizado do que nunca. “Havia aquele gráfico da apuração das eleições, do Norte Vermelho e do Sul Azul. Então, essa ideia original acabou sendo infiltrada por essa percepção de que o Brasil estava dividido. Ele sempre esteve dividido, na verdade, mas isso acabou me afetando de forma inédita. O filme acaba sendo um comentário também sobre como a violência que acontece na cidade tem suas raízes muito profundas, que retrocedem no espaço. No campo e no tempo, porque são questões muito antigas, muito históricas. Então, no final de contas, a gente acaba vendo somente o efeito imediato dessa opressão na cidade, muitas vezes não se dando conta de que a origem disso está no campo, está na história”, afirma Bandeira.

Completam o elenco Zuleika Ferreira, Sandro Guerra, Roberta Lúcia, Amara Rita Magalhães, Marcílio Moraes, Nivaldo Nascimento, Clebia Sousa, Marília Souto, Chris Veras, Carlos Amorim, Anderson Cleber, Aruandhê Pereira, Andala Quituche, Natureza Rodrigues, Maria José Sales, Ângelo Fàbio, Ane Oliva, Samuel Santos, Edilson Silva e Erick Silva

“Propriedade” está em cartaz nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Aracaju, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, João Pessoa, Maceió, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Luís e Teresina.

 

Quem é o diretor

Daniel Bandeira começou no audiovisual em 2001. Como montador, colaborou com vários realizadores do cinema pernambucano, como Kleber Mendonça Filho, Camilo Cavalcanti e Gabriel Mascaro. Em 2007, estreou como roteirista e diretor em longa-metragem com “Amigos de Risco”. Desde então, colaborou com a direção dos curtas “Sob a Pele” (2011), com Pedro Sotero, e de “Soledad” (2015), com Joana Gatis e Flávia Vilela. Como montador, assinou a edição dos longas “O Nó do Diabo” (2017), produção coletiva da produtora Vermelho Profundo, e de “Brasil S/A”, de Marcelo Pedroso, pelo qual conquistou o prêmio de Melhor Montagem no Festival de Brasília de 2014. “Propriedade” é seu segundo longa-metragem.