OSTRAS E MANGUES NO CINEMA DO BRASIL RELAPSO.
Por Celso Sabadin.
Geralmente tenho um pé atrás em relação a expressões que viram modinha. Tipo “experiência imersiva”, por exemplo. Mas tem uma destas expressões/modinhas que eu até curto: “Brasil profundo”. Num país tão culturalmente diverso como o nosso, retratado com tanta superficialidade pela grande mídia, o termo “Brasil profundo” é útil e interessante.
Por exemplo: dois filmes que retratam esta amplitude cultural da nossa terra e da nossa gente ganham espaço nos cinemas durante o mês de junho. Tratam-se de “O Silêncio das Ostras” e de “Filhos do Mangue”.
O Silêncio das Ostras
Entrando nesta quinta-feira, 10 de julho, em sua terceira semana em cartaz, “O Silêncio das Ostras” é o primeiro longa ficcional do diretor e roteirista Marcos Pimentel, o mesmo dos documentários “A Parte do Mundo que me Pertence”, “Fé e Fúria” e “Sopro”, entre outros.
Ambientado nos anos 1980, “O Silêncio das Ostras” retrata o cotidiano simples e simplório de Kaylane (interpretada por Bárbara Colen e Lavínia Castelari, em duas épocas), caçula de cinco irmãos, que vive na imensidão do interior de Minas Gerais. Introspectiva e reflexiva, a menina quase não interage com ninguém, exceto com sua mãe, Cleude (Sinara Telles), para quem abre seus sonhos e pesadelos.
O material de imprensa do filme traz uma expressão (que ainda não virou modinha) que achei das mais pertinentes: Kaylane vive num “Brasil relapso”. Aquele Brasil que abandona as pessoas à sua própria sorte, ou – pior – aos mandos e desmandos do poder econômico, aqui representado por uma daquelas conhecidas mineradoras criminosas que ultimamente deu pra investir em cultura pra tentar limpar a lama de sua imagem.
Porém, “O Silêncio das Ostras” não opta pela linha do panfletarismo. Felizmente, pelo contrário, ele prefere a denúncia muda, que silenciosa e inexoravelmente registra a dor do passar do tempo em que as aspirações são abandonadas e a tragédia anunciada é sempre confirmada.
A sempre excelente fotografia de Petrus Cariry é peça fundamental na construção do longa.
A atividade mineradora resultou em inúmeros lugarejos e cidades-fantasmas em Minas Gerais”, explica o diretor Marcos Pimentel. “De certa maneira, o filme busca reabitar, reocupar e repovoar esses lugares, como se a narrativa do filme aspirasse conferir uma possibilidade de permanência para cenários que foram extraídos à exaustão. A mineração roubou-lhes não somente o solo, mas também a crença e a alma”, completa.
No elenco ainda estão Adyr Assumpção, Lucas Oranmian, João Filho, Kaio Santos, Daniel Victor, Israel Xavier, Ryan Talles, Carlos Morelli, Lenine Martins, Renato Novaes Oliveira, Lira Ribas, Dinho Lima Flor, Cláudio Lima e Helvécio Izabel
Filhos do Mangue
Do interior para o litoral. Agendado para estrear em cinemas no próximo dia 17/07, “Filhos do Mangue” também enfoca este – digamos – Brasil profundo e relapso. Neste caso, em seu litoral, que estruturalmente não é muito diferente do interiorzão.
O longa começa em clima de mistério e violência, mostrando um homem (Felipe Camargo) acordando numa praia, e imediatamente sendo arrastado por um grupo de pessoas raivosas que o ameaçam. Ele é levado para um galpão onde, do lado de fora, há um outro grupo ainda maior de pessoas ainda mais raivosas que querem matar o sujeito. Todos falam em “devolver o dinheiro roubado”, mas o tal homem perdeu a memória, e não sabe do que se trata. Ele não se lembra sequer de seu próprio nome.
É nesta voltagem alta que começa “Filhos do Mangue”, quinto longa metragem de Eliane Caffé, filme que conquistou os prêmios de direção e atriz coadjuvante (Genilda Maria) no Festival de Gramado do ano passado.
Os primeiros momentos são eletrizantes, com a diretora (como já havia feito no seu ótimo “Narradores de Javé”) esbanjando talento e habilidade em fazer o público perder totalmente a noção de quem é ator profissional e de quem é habitante local naquele contexto de vilarejo ribeirinho.
Diante da impossibilidade de resolução imediata do problema, tudo se aquieta. E a amnésia do protagonista – que logo saberemos se chamar Pedro Chão – se apresenta como uma possibilidade de reinvenção e redenção ao alegado criminoso. Aos poucos, constrói-se uma instigante gama de personagens que se entrelaçam em situações bem brasileiras, como a violência contra mulheres, a exploração dos nativos e a luta pela sobrevivência, entre outras.
Lembrando “Kenoma” – outro incitante longa de Caffé – os contrastes entre o simbólico/poético e o rústico/áspero se estabelecem na narrativa.
Gravado em Barra do Cunhaú, Rio Grande do Norte, “Filhos do Mangue” traz ainda em seu elenco Titina Medeiros, Maria Alice da Silva, Roney Villela, Jeniffer Setti, Thiago Justino, Genilda Maria, Pequena Cintilante, Luana Cavalcante, além de pescadores, criadores de ostras e população local.