“300” FAZ A APOLOGIA DA VIOLÊNCIA BÉLICA DA ERA BUSH

Um sucesso anunciado: o épico 300, de custos estimados em US$ 60 milhões, faturou mais que o dobro desta quantia somente nas suas duas primeiras semanas de exibição nos Estados Unidos. E não poderia ser diferente. 300 é o típico produto hollywoodiano nascido para faturar. O filme é baseado na cultuada graphic novel (os puristas são capazes de empalar em praça pública quem disse “quadrinhos”) criada por Frank Miller e Lynn Varley, que por sua vez foi inspirada pelo filme Os 300 de Esparta (estrelado por Richard Egan, em 1962), que por sua vez se baseou nos textos em que o historiador Heródoto narra a Batalha de Termópilas, 450 anos antes do nascimento de Cristo. Ou seja, tantos séculos e tantas adaptações depois, hoje é impossível separar o que existe de História, de Mitologia e de Hollywoodianismos na aventura épica 300. E isso nem é importante. O filme vale mesmo pela sua estilização visual, onde tudo é assumidamente exagerado, over e rebuscado. Com várias tomadas em câmera lenta que parecem comerciais de perfume chique, a direção de arte de 300 utiliza ao máximo os recursos visuais que o cinema contemporâneo oferece, tudo para que a tela gigante do cinema se transforme numa versão ampliada e movimentada dos traços que o público já aprendeu a amar nas graphic novels de Miller. Afinal, quando a Warner decidiu entrar no projeto, ela sabia que o retorno financeiro só seria possível se o filme atraísse os milhões de seguidores que Frank Miller tem pelo mundo. Nunca os dez ou doze fãs ainda vivos e Richard Egan, do filme de 62… muito menos os de Heródoto… Diga-se de passagem, a Warner relutou muito em aceitar tocar o projeto, já que os executivos da empresa o achavam muito parecido com o fracassado Tróia. Felizmente tudo deu certo. Ainda que ambos falem da Grécia e sejam histórias míticas, 300 é infinitamente superior a Tróia.

Com alta tecnologia e cenários virtuais de rara beleza, o filme narra a saga do guerreiro espartano Leônidas que desobedece a tudo e a todos para encarar uma guerra insana contra o imperador Xerxes, da Pérsia. Ele seleciona seus 300 melhores guerreiros e – literalmente – vai à luta, em nome da liberdade e da independência de Esparta, mesmo sabendo da enorme superioridade numérica de seu oponente.
O elenco multinacional acompanha o estilo over do filme e está bem equalizado. Desde que se deixe o naturalismo do lado de fora do cinema – condição essencial para se curtir 300 – ninguém destoa e todos convencem em seus papéis. O escocês Gerard Butler (O Fantasma da Ópera) tem o vigor necessário para comandar não apenas seu exército como também a maior parte da ação do filme. A britânica Lena Headey (Os Irmãos Grimm) desfila o charme, a beleza e a inteligência necessárias à rainha de Esparta. E o nosso Rodrigo Santoro exibe uma androgenia e uma elegância soberba que os brasileiros já conhecem de Carandiru. Méritos para o diretor Zack Snyder, neste que é apenas o seu segundo filme para cinema. O primeiro foi Madrugada dos Mortos.

Como filho assumido dos quadrinhos (ooops, da “graphic novel”), o filme 300 carrega consigo toda a alma dos traços estilizados criados por Frank Miller. São batalhas monumentais que fazem do violento Apocalypto uma tarde no play ground, sangue aos litros, cabeças cortadas em profusão, belíssimos adereços e acessórios, além de movimentações de câmera estudadas sob medida para os fãs de videogames. Tudo isso transforma uma batalha épica acontecida há quase 2.500 anos num entretenimento sob medida para a camada da população que mais consome cinema no planeta: o adolescente.
A importância dos efeitos é tamanha que 300 levou 60 dias para ser filmado e mais de um ano em pós-produção. Nada disso é problema. Lamentável mesmo é a mensagem bélica embutida no filme. Pode-se dizer que a beleza de sua forma é inversamente proporcional à mensagem do seu conteúdo, que com o seu visual arrebatador procura vender ao público um conteúdo amargamente bélico e rancoroso. Nas entrelinhas, o filme tenta legitimar toda a violência que vem sido cometida pelo governo norte-americano, que briga, guerreia, invade e mata, sempre em nome de uma suposta Liberdade. Não é nada difícil identificar as mensagens cifradas em 300:

Filme: O Rei Leônidas, de Esparta, quer guerrear contra a Pérsia, embora o político espartano Theron prefira uma saída diplomática para o impasse ao qual chegaram as duas nações. Tentando legitimar sua atitude bélica, Leônidas recorre então a uma espécie de Conselho de magos e anciãos, como que pedindo permissão e “benção” para o ataque. O Conselho rejeita. Leônidas desobedece a todos e parte para a guerra assim mesmo.
Realidade: Bush quer invadir o Iraque. Setores moderados do governo propõem outras saídas. A ONU não permite. Bush invade assim mesmo, desrespeitando abertamente o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Filme: Em determinado momento da guerra, o povo Árcade, mostrado desde o início do filme como uma nação cheia de boa vontade, mas fraca como guerreiros, abandona Leônidas e o exército Persa à sua própria sorte, quando as coisas começam a ficar mais complicadas.
Realidade: Bush nunca escondeu o seu repúdio contra os países que se uniram ao EUA nos primeiros ataques ao Iraque, e que depois foram reduzindo ou até mesmo zerando seus homens no campo de batalha. O próprio ministro britânico Tony Blair, pressionado pela opinião pública, reduziu seus homens no Iraque, no mesmo momento em que Bush solicitava o envio de mais tropas.

Filme: Leônidas vai a guerra e deixa com sua esposa, a rainha Gorgo, a missão de fazer com que os políticos espartanos obtenham permissão para o envio de mais soldados, enquanto os famosos “300” seguram as pontas no campo de batalha.
Realidade: Como Bush, em pessoa, não vai ao campo de batalha, ele não precisa delegar essa missão a ninguém, mas o presidente dos EUA solicita repetidamente verbas e mais verbas para dar continuidade à sua guerra. Recentemente, em janeiro, ele pediu mais US$ 100 bilhões para dar prosseguimento à ocupação do Iraque.

Quando, na última cena de 300 (calma, não vamos contar nada que possa estragar o final), Esparta parte para um segundo, maior e mais destrutivo ataque contra a Pérsia, motivado pela coragem e audácia do primeiro ataque de Leônidas, fica clara a relação entre estes ataques e as duas guerras do Golfo, a primeira comandada por Bush pai, e a segunda por Bush filho.

Isso sem falar que quem narra toda a história é um guerreiro que perdeu um olho durante a batalha (logo, simbolicamente, só vê um lado da questão), e que a Pérsia, hoje, equivale ao Irã, um dos inimigos “da hora” de Bush. Evidentemente, no filme, o guerreiro ensandecido Leônidas é o grande herói, enquanto o supostamente moderado Theron é pintado como fraco, corrupto e covarde.

É claro que a horda de adolescentes que está invadindo os cinemas do mundo inteiro para ver o filme não se importará nem um pouco com esta leitura política. A enorme maioria deles não faz idéia do que seja Esparta ou Pérsia, fora os que desconhecem o que seja Bush. É aí que mora o perigo… A tal história de “liberdade a qualquer custo em nome da democracia” já rendeu vários massacres de mentirinha nas telas nos cinemas… e de verdade da vida real.