ENCANTADOR, “AS AVENTURAS DE MOLIÈRE” ESBANJA SAGACIDADE E BOM HUMOR.

Especular sem compromissos sobre o que poderia ter acontecido em determinado momento obscuro da vida deste ou daquele gênio das artes sempre foi uma grande diversão cinematográfica. “Minha Amada Imortal”, sobre Beethoven, ou mesmo a leitura livre que Peter Schaffer fez sobre a vida de Mozart em “Amadeus” são dois bons exemplos disso. Agora, chegou a hora de Jean-Baptiste Poquelot, mais conhecido como Molière.

Como as biografias de Molière mencionam uma longa e misteriosa ausência quando ele tinha 22 dois anos, os roteiristas Laurent Tirard e Grégoire Vigneron imaginaram a seguinte (e divertida) trama: Moliére, neste período, teria sido praticamente seqüestrado por um mecenas desejoso de conquistar a sua jovem amada através de um texto teatral. O milionário apaixonado teria então contratado Molière como seu consultor, sem sequer desconfiar, porém, que o dramaturgo (ainda não famoso) se apaixonaria pela própria esposa do mecenas. Este episódio teria moldado todo o caminho de sucesso que o protagonista viveria em seus próximos anos. Tais fatos não têm a menor relação com a realidade, mas geraram um filme delicioso, criativo, e encantador: “As Aventuras de Molière”.

Com o ritmo e a leveza das grandes comédias clássicas, o filme desenvolve toda esta fantástica trama amparado por exuberantes interpretações de todo o elenco. Molière é vivido com picardia e sagacidade por Romain Duris, de “O Albergue Espanhol”. O rico mecenas Jourdain, sem medo de ser ridículo, é Fabrice Luchini, de “O Insolente”. E fechando o triângulo amoroso, a bela Elmire, esposa de Jourdain, é Laura Montante, de “Medos Privados em Lugares Públicos”. Completa o elenco Ludivine Sagnier, a “Garota Dividida em Dois”, de Chabrol.

É notável como uma obra fundamentada sobre o mundo do teatro acaba sendo tão cinematográfica. Com diálogos afiadíssimos, o filme traz momentos de rara inspiração, como a cena em que Molière (que adota para si o codinome de Tartufo, exatamente uma de suas obras mais famosas) e Elmire fantasiam – simultaneamente – como seria o primeiro encontro amoroso entre ambos. E como a ilusão destes pensamentos fugazes rapidamente se esfacela no ar, vitimada por mal entendidos.
Digno de nota também é a personalidade patética de Jourdain, um homem sem nenhuma habilidade artística, mas que acredita às raias do ridículo que seu interminável dinheiro possa lhe comprar prestígio, fama e títulos de nobreza. Se Jourdain fosse um personagem contemporâneo, certamente estaria na capa de Caras.

“As Aventuras de Molière” foi indicado a quatro prêmios César. Acabou não ganhando nenhum, mas levou mais de um milhão de franceses às bilheterias dos cinemas, e já pode ser considerado como uma das melhores estréias do circuito brasileiro deste ano.

Trata-se apenas do segundo longa do diretor Laurent Tirard, um ex-jornalista que durante sete anos entrevistou diretores como Woody Allen, David Lynch, Martin Scorsese, Jean-Luc Godard e os irmãos Cohen para a série Lições de Cinema publicada inclusive no Brasil.
Certamente Tirard soube ele próprio aprender bem estas lições.