“NATIMORTO” E A CHARMOSA DECADÊNCIA DO ISOLAMENTO.
Ele é franzino, feio, inseguro, e assexuado. Ou pelo menos quer ser. Ela é jovem, exuberante, bonita e cheia de sonhos. Nenhum dos dois tem nome. Entre ambos, um ponto em comum: fumam como dois franceses! O que levaria este casal tão improvável a optar por uma vida de reclusão, trancafiados num decadente quarto de hotel? A resposta você não verá em “Natimorto”, intrigante filme dirigido por Paulo Machline, a partir do livro homônimo de Lourenço Mutarelli (o mesmo autor de “O Cheiro do Ralo”). É o próprio Mutarelli, inclusive, que interpreta o homem sem nome. A mulher, igualmente anônima, é vivida por Simone Spoladore, em grande momento.
“Natimorto” se ocupa muito mais em provocar perguntas que oferecer respostas. Explora o confinamento claustrofóbico de personagens que transitam com total desenvoltura entre o verossímil e o totalmente fantasioso. Propõe uma situação limite. Enfoca uma relação simbiótica onde ele busca um isolamento mórbido enquanto ela procura uma sombra segura para desabrochar. E deixam seus futuros serem regidos por ícones tão improváveis como um baralho de tarô ou, pior, as imagens de advertência que o Ministério da Saúde estampa nas embalagens de cigarros. Quem pautaria sua vida por informações fornecidas por um Ministério? Mistério.
Num primeiro momento, teme-se por um filme teatral. Não exatamente pela sua unidade cênica, mas pela interpretação claudicante de Mutarelli, bastante fraca nos primeiros minutos. Aos poucos, porém, de alguma forma este defeito é corrigido, e prevalecem na tela a atraente estranheza pelos personagens e a bela fotografia de Lito Mendes da Rocha.
O livro “Natimorto”, que leva o irônico subtítulo de “Um Musical Silencioso”, já havia sido levado ao teatro em adaptação de Mário Bortolotto. Chega agora ao cinema repleto de sarcasmo e envolto por um fascinante charme decadente.
A experiência requer esforço do espectador, que será recompensado se embarcar na viagem
Lourenço Mutarelli, que é mais lembrado como quadrinista do que como romancista, e mais conhecido por ser escritor do que por ser ator, surpreende na interpretação do personagem principal. Sua atuação é um tanto calculada e algo artificial, o que faz ele um irremediável chato em alguns momentos, mas a história que escreveu tem força, e ao lado de uma atriz habilidosa, como Simone Spolodore, não faz feio no papel.
O cineasta Paulo Machline revela sua carreira pregressa na direção de videoclipes e nos oferece um filme com uma linguagem que guarda similaridades com os hábitos correntes no gênero. Cores artificiais são exploradas para iluminar os rostos, mudanças de textura são sentidas na definição do filme e a trilha sonora dá ritmo e conduz os planos, principalmente na parte final, que concentram certo tipo de emoção descompensada, como a loucura gradativa em que mergulha o personagem.
Mutarelli interpreta um fumante inveterado que vê nas incômodas imagens impressas no verso dos maços uma relação com as cartas do tarô e suas predições. Ele é um agente musical que vive um casamento frustrado e encontra em sua cliente, recém chegada à cidade, a possibilidade de uma outra rotina. Ele propõe à aspirante a cantora uma vida isolada dentro de um quarto de hotel, onde passaria os dias a lhe contar muitas das histórias que guarda consigo, e ela, por sua vez, cantaria somente para ele, alguém que jamais a trataria com a crueldade dos críticos, que nunca entenderiam a magia de sua voz.
Surge então uma relação de cumplicidade e dependência que beira as raias da loucura, já que a maioria dos diálogos passa pela interpretação arbitrária das horríveis figuras nos maços de cigarros. Dessa forma, o filme torna-se pesado, com doses de humor muito breves e escassas. Uma opção interessante foi criada com a ideia da voz da cantora não ser revelada por meio do som, mas por meio de um gestual delicado e fascinante. Foi uma solução bem pensada para que o espectador não tivesse acesso ao talento da cantora, ou à falta dele, e assim incitasse a imaginação.
Ovacionado no final de sua exibição, “Natimorto” conquistou a plateia do Festival do Rio. Com uma atmosfera retrô na composição dos cenários e do figurino, e uma narrativa que é baseada no diálogo inteligente criado originalmente por Mutarelli, “Natimorto” não é aquele filme que conquista inteiramente, mas, pelo menos, tem grande senso de unidade em sua concepção, fato que pode ser claustrofóbico para os mais conservadores, ou plenamente confortável para os olhos da geração que cresceu vendo clipes da MTV.

