A INSANIDADE DAS FALSAS VERDADES DE “’EU, TONYA”.

por Celso Sabadin. 

Existem alguns níveis curiosos na leitura de “Eu, Tonya”. O primeiro, mais superficial, e talvez até por isso mesmo menos interessante, é o da mera cinebiografia. Estruturalmente, trata-se da trajetória de Tonya Harding, campeã de patinadora artística no gelo nos anos 90. Infância difícil, mãe obstinada, luta pela fama, treinamentos exaustivos, momentos de glória, sofrimentos, enfim, todo o pacote da cinebiografia convencional está lá.

Mas há mais: o filme também é um ácido estudo sobre a loucura. Não esta loucura institucionalizada de internações e hospitais, mas a loucura nossa de cada dia, vinda das pessoas próximas, dos relacionamentos convencionais, loucuras de consequências tragicamente inimagináveis cometidas por pessoas as mais desequilibradas, mas que permanecem livres, leves e soltas no convívio social do cotidiano de todos nós, nos ameaçando mudamente a todo instante.

E há também outra interessante discussão sobre aquilo que convencionamos chamar de “verdade”. É neste momento que entra a  magia do cinema. O roteirista Steve Rogers (o mesmo de “P.S. Eu te Amo” e “O Natal do Coopers”) idealizou o filme como um “falso documentário”, ou seja, as pessoas envolvidas na ação dão seus depoimentos diretamente para a câmera, como num documentário convencional. As cenas teoricamente “ficcionais” são então entremeadas a estas teoricamente “documentais”. Mas logo se percebe que os depoentes são os atores, e não as pessoas reais que viveram a história, ao mesmo tempo em que a qualquer momento a cena “ficcional” pode se transformar em “documental”, com o ator interrompendo a ação para explicar ao público que aquilo que ele está vendo na verdade não aconteceu.

Em outras palavras, no filme como na vida, não existe uma única verdade, mas sim a verdade de cada um. O filme pretende lançar maisdúvidas que certezas.

No final da projeção veremos cenas, aí sim, das pessoas reais envolvidas no caso de Tonya Harding. O que deve ter se transformado em algum lei do cinema, pois todos os filmes baseados em casos reais de uns tempos para cá terminam com este tipo de cena.

De qualquer maneira, “Eu, Tonya” brinca eficientemente com o antigo conceito que manda publicar a lenda, caso ela seja mais interessante que a verdade que a gerou. Mesmo por que, afinal, alguém já disse que o cinema é a mentira a 24 quadros por segundo… isso na época em que existiam quadros por segundo…

Com direção do australiano Craig Gillespie (o mesmo da versão 2011 de “A Hora do Espanto”), “Eu, Tonya” estreia nesta quinta, 15 de fevereiro.