“A ALMA DE GENTE” É O CINEMA BRASILEIRO QUE A ANCINE NÃO PERMITE.

Programas sociais que tiram os jovens das ruas para encaminhá-los para atividades culturais, artísticas ou esportivas geralmente costumam render documentários edificantes, mostrando que existem, sim, saídas para os grandes problemas do país, desde que haja vontade política.

Numa primeira olhada, parece que “A Alma da Gente”, dirigido por Helena Solberg e David Meyer, percorreria por esta trilha assistencialista. Não percorre. A boa notícia é que o filme vai muito além do lugar-comum. O próprio ponto de partida do projeto já trafega, por si só, na contramão deste nosso tão burocratizado cinema brasileiro: o filme foi realizado em duas partes bem distintas, distanciadas nada menos que 10 anos uma da outra.

Tudo começou em 2002, quando os cineastas Helena Solberg e David Meyer filmaram o cotidiano dos ensaios de 60 adolescentes integrantes do Corpo de Dança da Maré, no Complexo da Maré, Rio de Janeiro. Coordenado pelo coreógrafo e educador Ivaldo Bertazzo, o grupo durou apenas três anos. Dez anos depois, Helena e David voltaram ao Complexo da Maré para investigar como estavam e por onde andavam alguns dos integrantes do projeto. O resultado dos dois períodos de filmagem é o documentário “A Alma da Gente”.

Na primeira fase, foram captadas 50 horas de imagens, sem patrocínios ou leis de incentivo. Tínhamos equipamento de filmagem e começamos a trabalhar”, conta David Meyer. “Ficamos obcecados. Nunca deixamos de pensar naquelas pessoas e queríamos saber qual o impacto que aquela vivência poderia ter tido sobre a vida de cada um deles”, conta Helena. Assim, em 2012 eles saíram em campo para localizar os então adolescentes, agora adultos, que haviam “estrelado” a primeira fase das filmagens. E se depararam com surpresas. Boas e ruins.

Realizado com solidez e longe, muito longe de apelar para os clichês desgastados que por vezes permeiam este tipo de documentário social, “A Alma da Gente” abre também uma interessante discussão para o cinema brasileiro atualmente engessado por leis e editais muitas vezes inexequíveis: o filme seria absolutamente inviável, não fosse pelo desprendimento de seus realizadores. Ou seja, imagine, nos dias de hoje, alguém levar um projeto para Ancine, “prevendo” duas fases de filmagens separadas por 10 anos. Não passaria nem pelo porteiro da Agência Nacional de Cinema. O que prova mais uma vez que este excesso de burocratização da produção audiovisual nacional tem matado, na fonte, projetos que prometem ser dos mais interessantes.
Há um tipo de cinema que não pode ficar na dependência de anexos, leis, parágrafos e alíneas. É justamente o cinema mais inventivo, provavelmente mais urgente, que tende a morrer nos corredores das repartições públicas. E “A Alma da Gente” é um belo exemplo disso.

Ponto para Helena Solberg e David Meyer, cineastas que levam no DNA a inquietação dos bons documentaristas. Entre seus títulos mais conhecidos estão “Carmen Miranda: Bananas Is My Business’’, dirigido por Helena e produzido e montado por David. “Vida de Menina” e “Palavra (En)cantada,” também foram dirigidos e produzidos da mesma forma. “Bananas” foi lançado no Rio e Nova York ao mesmo tempo e convidado a mais de 50 festivais internacionais de cinema. No Festival de Brasília ganhou Melhor Filme pelo Júri Popular e o Prêmio Especial do Júri; no Festival Internacional de Chicago foi premiado como Melhor Docudrama; em Havana, Melhor Documentário, alem de vários outros prêmios. “Vida de Menina” foi o grande vencedor do Festival de Gramado 2004, levando os Kikitos de Melhor Filme, Fotografia, Música, Direção de Arte e Roteiro. “Palavra (En)cantada” ganhou o troféu de Melhor Direção no Festival Internacional do Rio, 2008. Helena Solberg também ganhou o National Emmy Award pelo o filme “From the Ashes… Nicaragua Today.” Os dois sócios juntos produziram números outros documentários de longa-metragem como “The Brazilian Connection,” “Chile: By Reason or by Force,” “Home of the Brave” e “The Forbidden Land.”
David Meyer ganhou o New York Area Emmy Award pelo filme “The Blues According to Doc Pomus.” Ele também dirigiu e produziu vários filmes e programas para emissoras como HBO, PBS, BBC, Channel 4, Canal Plus, Arte, Arts & Entertainment, and National Geographic Television.