A CRUEL ANGÚSTIA DO OLHAR MASCULINO SOBRE O UNIVERSO FEMININO EM “MAL VIVER”.

Por Celso Sabadin.

Existe um forte viés de – digamos – autoflagelação no cinema português. Ou, pelo menos no cinema português que chega ao circuito brasileiro. A cinematografia dos nossos primeiros invasores investe invariavelmente no peso da dor, no repisar profundo de chagas que jamais cicatrizam. Doa a quem doer.

Uma primeira leitura deste processo especifica que os filmes realizados em Portugal, como fieis refletores da alma do país, destilam o secular sofrimento de uma sociedade que perdeu todo o seu protagonismo, após ter dominado os mares do planeta.

“Mal Viver”, de João Canijo, navega ferozmente por estas águas amargas. Escrito pelo próprio diretor, o roteiro coloca em rota inevitável de colisão autodestrutiva três gerações de mulheres que se agridem verbalmente durante as pouco mais de duas horas de projeção.

Motivado por uma morte – claro! – o encontro acontece em um grande, decadente e quase vazio hotel da família. Neste depressivo ambiente, emergem sofrimentos, angústias e acusações familiares em inimagináveis graus de perversidade.

A fotografia em tons escuros e esmaecidos, além do o ritmo introspectivo, potencializam a exasperação.

Diálogos que se desenvolvem paralelamente são auditivamente perceptíveis para quem domina o idioma, mas certamente devem ter causado muita dor de cabeça aos legendadores internacionais.

Usando e abusando do desgastado recurso de roteiro de “ouvir atrás da porta”, “Mal Viver” lança um olhar crudelíssimo sobre o universo feminino. Totalmente escrito e dirigido por um homem .

Em determinado momento da trama, uma personagem diz: “É tudo uma chatice, não é?”.

Vencedor do Prêmio do Júri em Berlim 2023, “Mal Viver” estreou na última quinta, 18 de janeiro, em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre e Aracajú.

 

Quem é o diretor

O cineasta português João Canijo, nasceu no Porto, em 1957. Foi estudante de História, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, entre 1978 e 1980. Abandonou esses estudos para se dedicar ao cinema, tendo sido assistente de realização de Manoel de Oliveira, Wim Wenders, Alain Tanner e Werner Schroeter. Em 1988, realizou seu primeiro filme “Três Menos Eu”, selecionado para o Festival de Rotterdam. Participa do Festival de Cannes, na mostra Un Certain Regard por duas edições: em 2001, com “Ganhar a Vida”, um drama trágico protagonizado pela atriz Rita Blanco que participou de diversos filmes de Canijo como “Três menos eu”, “Filha da mãe”, além dos mais recentes; e com “Noite Escura”, em 2004, que foi o filme português escolhido como candidato ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro daquele ano. “Mal Viver” recebeu o Urso de Prata, Prêmio do Júri, no Festival de Berlim 2023 e “Viver Mal” participou da mostra Encounters, também em Berlim.