“A FILHA DO ADVOGADO”: PRIMÓRDIOS DO CINEMA PERNAMBUCANO.

Por Celso Sabadin.

“Recife, berço de heróis e indomáveis guerreiros, tem em sua história e em seu sorriso uma beleza que empolga e enobrece”. A cartela inicial de “A Filha do Advogado”, de 1926, ratifica um dos principais caminhos traçados pelo histórico Ciclo de Pernambuco, importante movimento cinematográfico regional daquele período: difundir a capital do estado como polo de desenvolvimento e civilidade. Seguem-se à ufanista legenda “vistas” (como se dizia na época) da cidade que, como não poderia deixar de ser, sublinham a sua pujança e modernidade e servem de pano de fundo para introduzir a trama roteirizada por Ary Severo, a partir do livro de Costa Monteiro.

Dr. Paulo Aragão, classificado no letreiro do filme como “uma das mais respeitáveis figuras da elite recifense”, é um conceituado advogado que, “como quase todos os homens, trasia comsigo um grande segredo”, também de acordo com as legendas. Tal segredo, no caso, atende pelo nome de Heloísa, uma filha que teve fora do casamento, agora já adulta, que o respeitado Dr. Paulo mantem às escondidas, junto com a mãe da moça, numa área rural de Pernambuco. Dr. Paulo define as duas mulheres como “Rebentos das minhas extravagâncias de rapaz e que por conveniência conservo-as longe daqui”.

Antes de seguir para uma temporada na Europa, o advogado pede a seu primo, amigo e confidente, o jornalista Lúcio Novaes, que transfira aos “rebentos” os papeis de uma nova propriedade, agora na capital, mais precisamente na região dos Aflitos. Fiel, Lúcio atende ao pedido, mas se apaixona por Heloísa. Surge então na trama o contraponto vilanesco Helvécio (interpretado por Jota Soares, também diretor do filme), filho de Dr. Paulo, homem sem princípios nem caráter, “libertino e estroina”, mas classificado nas legendas como “victima das loucuras do mundo”. Coitado!

A colisão entre as personalidades do ilibado Lúcio, da doce Heloísa e do rude Helvécio prenunciam o conflito dramático que se desenvolverá na trama que, a partir do terceiro terço do filme, assumirá contornos policiais e, digamos, semi-incestuosos.

“A Filha do Advogado” vem permeado das intensas nuances de hipocrisia, racismo e machismo que marcavam – e ainda marcam – a sociedade brasileira daqueles anos 1920. Não parece haver nenhum conflito ético ou moral no fato do Dr. Paulo, o advogado do título, assumir a atitude covarde e patriarcal de esconder sua filha bastarda e sua ex-amante do seu convívio social, desde que pague por isso com as propriedades que adquire para ambas. Mesmo sufocadas pelo anonimato e excluídas da sociedade, Heloísa e a mãe idolatram verdadeiramente o seu “benfeitor”, aqui pintado como o grande herói do filme. Dr. Paulo ainda joga sobre os ombros de Heloísa a responsabilidade dela manter um comportamento honesto, para que ela seja um “reflexo do meu honrado nome”, nos dizeres do advogado.
Destaque também para o caseiro de Heloísa, única testemunha que poderia facilmente inocentar sua patroa do crime que a ela foi injustamente imputado, mas que vende seu silêncio – ainda que momentâneo – interpondo-se gananciosamente à ação da justiça. Detalhe: o personagem é negro. O único negro do filme com direito a diálogos. Há outros dois – uma babá e um policial – cumprindo apenas função figurativa dentro de uma trama totalmente protagonizada por brancos. Como sempre aconteceu na dramaturgia brasileira, diga-se.

Assim, ainda que ficcional, “A Filha do Advogado” assume, quase um século após sua realização, uma importante função documental de retratar a estrutura social de um país apoiado em sua elite branca e validada por uma dramaturgia igualmente dominante dos detentores dos meios de produção da época.

Apesar de restaurada pela Cinemateca Brasileira, a cópia disponível gratuitamente na internet está em estado deplorável, mas mesmo assim com visibilidade suficiente para o estudo desta raridade do importante cinema pernambucano que, décadas depois, encantaria o cinema do Brasil e do mundo.