A GENIALIDADE MAROTA DE “BRANCO SAI PRETO FICA”.

por Cid Nader.

A estrutura básica de Branco Sai Preto Fica é simples e facilmente identificável: são três núcleos que caminham paralelamente, dos quais em intui-se que após um trecho de suas trajetórias em tela terão destino que em algum instante se cruzará. Nada mais simples do que contar histórias que se cruzarão forçosamente, dando a cada uma seu quinhão de tempo para que se expliquem, para que o espectador se acostume: certo? Nas mãos de Adirley tal simplicidade mantém o status mesmo, mas as ideias embutidas para cada lado, para cada vértice, surgem como explosão criativa, como modos de revelação que somente num instante já próximo do final ganhará uma veloz faceta de depoimentos sobre ocorridos. Tal construção evidencia seus personagens em seus afazeres comuns: um como uma espécie de radialista que conclama e canta, que toca músicas negras sempre muito boas, que age com a malemolência necessária ao que as letras dessas músicas exigem, que anda de cadeira de rodas; outro, com sua perna mecânica vive de tentar melhores pernas, de pesquisar de ajudar outros amputados; e o outro, um estranho sujeito vindo de outros tempos. E siga-se com a história.

Mas, antes de seguirmos: Adirley propõe para referendar e botar potência nisso da exclusão, do apartar, uma brincadeira (nem tanto) que situa a ligação das duas cidades como que vigiadas por uma polícia especial, exigindo passaportes para a entrada legal dos ferrados de um lado na capital ostentosa. Isso é tão inusitado como de impacto, pela insanidade (nem tanto) imaginada. Aliás, parecendo uma reinterpretação muito mais pé no chão de Godard com seu Alphaville: momentos que rendem belos visuais na estrada: como somente um exemplo do apuro que o diretor preza pelas boas captações. Passaportes podem gerar mais clandestinidade, moeda de troca… Azar de quem os impõem.

Com a entrada de diversas fotos antigas (todas muito bonitas e significativas) – oitentistas – do clube Quarentão, lá da Ceilândia, começa-se a intuir sobre o que tratará a base da história, num filme híbrido, na mais completa acepção do terno em tempos de cinema atual: e passa-se a entender que os defeitos físicos dos dois negros de lá – Marquim Shokito e Dilmar Durães -, foram originados de um mesmo momento, de uma situação que evidencia de forma oficial o quanto os de lá são quase coco para os de cá. Um vive das recordações e da acumulação de músicas que incomodam aos de cá (ou os de Brasília, ou os “brancos”), para que a partir delas se faça a justiça. Personagem ágil e esperto em sua vida real, que empresta ao filme as características principais para a agitação: e tome música boa no vinil, e tome música engraçada “ao vivo”. O outro segue a vida, como que sendo obrigado a viver e acostumado com seu defeito, mas buscando melhores condições: até que esses dois lados da questão tornam-se parte da peça importante de compreensão que vai bem além do documental.

O sujeito que é mandado de um outro tempo para ver, resolver, obsevar, é “capturado” pelos atos dos “revoltosos” (o terceiro vértice), nos momentos dos engendramentos, com suas músicas interferindo diretamente nos locais onde ele se encontra à espera: e são belos visualmente, com truques simples de globo de luz refletindo nas parede de aço de um contêiner; e são de impacto visual nos instantes dos trilhos do metrô como os caminhos utilizados. Aliás, vale alertar para a significação mais palpável dos trilhos e do metrô em si, como o meio de ligação, da Brasília que exclui, com a Ceilândia, excluída: num dado instante, apesar de ser a metáfora temporal de distâncias e segmentações, ele grita contra as ações mais comuns das pessoas que fazem parte oficial do sistema que afaga, metendo a religião na história, e até grafiteiros…

E o diretor propõe a invasão, o mostrar a cara e a necessidade de seu povo gritar e se impor. São eles todos os “negros” de um país que finge e que afaga, impedindo, por conta de nossos traços herdados da “lusitaneidade gentil”, sempre, a sensação/necessidade do confronto: sempre fingimos (e de certa forma até conseguimos mais verdades nessa relação, quando comparados a outros povos) irmandade aos nossos excluídos, atitude que os impediu de reagirem, pelos tempos, como fizeram os negros ianques, por exemplo – já que lá, o modo anglo de ser constantemente mostrava na cara, sem firulas ou passadas de mão nas cabeças, que não consideravam mesmo os seus excluídos no mesmo patamar de respeito. Só que gênio que é, fino no trato da observação e das relações, a proposta que Adirley imagina de invasão da Brasília se faz do modo mais justo e assustador para essa burguesia que cresce de modo estranho no país (até indo na contramão histórica do falso trato gentil, sem máscaras e com os dentes brancos bem mais escancarados): é a invasão que se dará pelos terrenos da identidade, do que marca as diferenças, do que faz com que os da capital ataquem esses das margens da cidade (não é de se contar, seria injusto: é de se ver – mas tem sonoridade envolvida). Quem conseguiria propor o necessário confronto da maneia como foi feito no filme, aqui em nossa atualidade?

E então surge outra faceta de genialidade marota, outro jeito de como fazer isso sem grana para efeitos ou deslocamentos (e os efeitos usados na deflagração desse instante final/catarse momento são os mais bem-vindamente toscos esperados, de luzes e fumaças) que encerra o momento do ataque sob traços, desenhos, numa simplificação genial e linda de procedimentos que poderiam ser extremamente complexos e onerosos: casando com o lado futurista usado para um dos vértices do triângulo. Final que arranca reações de tão diverso do que se espera acontece.

Estar vivendo esse momento em que surge um Adirley Queirós – diretor do qual comecei a conhecer a obra lá em 2009, com o curta-metragem Dias de Greve, e a quem só notei genial no ano seguinte com a verdadeira obra-prima, outro curta, que é o Fora de Campo – com certeza é das maiores felicidades que quem mexe com cinema, ou é “somente” cinéfilo antenado, pode ter. Há a percepção total de estarmos num momento histórico dentro a produção nacional, onde alguém como ele surge como um inovador, um cara que arrisca na linguagem, ousado (como foi Tonacci em seu tempo de surgimento, um culto, e que cito aqui como exemplo por ser dos cineastas mais importantes do país, pelo seu não reconhecimento dentro das camadas amplas, e pelo jeito de estupefação que demonstrava após ter visto aoBranco Sai Preto Fica, me perguntando mais da carreira do Adirley, ao final da sessão, durante a Mostra de Tiradentes, quando fiz esse texto), e que faz isso a partir de pouca matéria para trabalhar (um misto de falta de recursos mesmo e de opção: para deixar evidente de que vem, fala, e cria a partir de um mundo de isolamento social). Na tenda de exibição de Tiradentes (quando vi ao filme pela primeira vez) a certeza total de que há situações que pagam a ida a Festivais e Mostras, e de que ver o filme dele sendo aplaudido em delírio em “cena aberta” já pagou ao menos umas mil idas a outros eventos. Bem-vindo definitivamente ao campo de admiração isolado e fechado que eu e muito poucas pessoas de sorte reservam para bem poucos, meu caro.

P.S.: rever e rever ao filme evidencia o sentimento da melancolia por um tempo, por um período de vida perdida – que pelo filme visto desde a primeira vez bateu forte como “vida arrancada”, num modelo de protesto de Adirley que é tão incisivo que por vezes nos toma seu carinho pelos seus, para além do seu repetido carinho pela Ceilândia toda. Rever ao filme pela sei que lá que quantidade de vezes imprimiu uma certeza que deveria ser tão natural, porque ao defender um todo, um local, um povo (e sem choro, mas com atitudes), ele atenta a indivíduos, pessoas, que têm seus indivíduos e pessoas específicas: aquela sensação que temos por vezes quando olhamos, por exemplo, pessoas e carros ao longe, e paramos para pensar, “puxa, isso é tão vasto, cada um nesse instante está pensando uma coisa, feliz ou ansioso, indo para o descanso ou sabe-se lá para onde…”, é o que nutre seu cinema pra valer, suas preocupações, talvez até a razão de fazer cinema. A obra autoral que vem construindo sobre a Ceilândia – pode ser no filme que fala dos grevistas ou do futebol amador, pode ser numa ficção científica -, é obra autoral de carinho por alguns seres humanos.