A HISTÓRIA BRASILEIRA SOTERRADA NO VIBRANTE “OBRA”.

Por Celso Sabadin.

Por mais que o cinema se apaixone pelo paredão acinzentado, ao mesmo tempo opressor e belo, formado pelos inúmeros prédios espetados na capital paulista, por mais que desde “São Paulo S/A” vários cineastas insistam em tentar decifrar este escandaloso excesso de concreto,  sempre surge um novo diretor com uma nova visão desta, com o perdão do clichezaço, selva de pedra. E diante de novas lentes e de novos olhares São Paulo se reinventa a cada fotograma. Ou a cada pixel, para ser mais sintonizado com a modernidade.

Uma nova reinvenção cinematográfica da cidade é proposta pelo cineasta paulistano Gregório Graziosi no seu longa de estreia “Obra”. É um filme que não perde tempo para impactar o público. Logo nos seus primeiros segundos, a “skyline” paulistana (da qual não se vê o “sky”, mas só a “line”) é atirada brutalmente sobre a plateia. Entupido de prédios, escondido na neblina, e emoldurado por um trabalho de som que jamais será menos que fascinante, o plano grita. E grita forte. A fotografia de André Beltrão, também estrelando no longa, é tão impactante que eu demorei alguns segundos para perceber que o filme é preto e branco.

Se um dos clichês da crítica costuma dizer que “a cidade também é um personagem”, aqui a frase precisa ser alterada: a cidade é a protagonista.

É nela que habita o arquiteto João Carlos (Irandhir Santos) de sobrenome tradicional, responsável por uma grande obra que está sendo empreitada por seu pai, no terreno do seu avô. Seria uma metáfora da tradicional e conservadora São Paulo quatrocentona, não fosse o ator principal, um ícone do cinema pernambucano, tão identificado com o nordeste. Não nos enganemos: o filme é uma amálgama do Brasil como um todo.

Prestes a ter um filho, e com fortes dores na coluna (o que poderia ser mais “estrutural”?), João Carlos de repente se vê diante de um sério problema: ossos humanos emergiram do lamaçal das escavações da obra. Com todo o simbolismo que isso possa representar.

Vemos então o conflito não de duas, mas de quatro gerações. Um avô combalido, certamente o autor da tragédia mortal, agora à espera da própria morte. Um pai conivente e adequadamente omisso. E um filho prestes a nascer. No meio deles, um “herói”  que ao mesmo tempo procura respostas e busca se religar a algum tipo de religiosidade ao restaurar, por prazer próprio, o afresco de apóstolos de uma igreja decadente. São 12 os apóstolos. São 12 os esqueletos encontrados.

Talvez este texto passe a impressão de “Obra” ser um filme de investigação e mistério. Não é. Mesmo trazendo algumas cenas filmadas dentro dos padrões dos grandes suspenses, trata-se de um filme introspectivo. Uma reflexão silenciosa sobre a própria história brasileira e a nossa tradição de esconder corpos no armário. Um escancaramento da nossa luta de classes que há séculos deflagrou uma guerra civil que persiste até hoje e que nunca é admitida. Além de um belíssimo exercício formal de estilo que faz de cada enquadramento uma pequena e fugaz obra de arte. Que pode não ser tão grandiosa e perene como a arte arquitetônica, mas que traz a tênue e inexplicável arte do mistério humano de viver geração após geração questionando o seu próprio DNA.

Selecionado para o Festival de Toronto, “Obra” ainda traz no elenco Julio Andrade, Lola Peploe (sobrinha de Bernardo Bertolucci), Sabrina Greve (em rápida participação), entre outros.