A OBSESSÃO HUMANA POR CÃES ALAVANCA O MEDIANO “WHITE GOD”.

Por Celso Sabadin.

Vivemos a ilusão que estamos numa sociedade na qual tudo pode ser dito. Que qualquer ideia pode ser expressa. Nada mais enganoso! Pelo contrário: as chamadas “patrulhas ideológicas” estão mais atentas que nunca, à espreita em cada esquina, porretes na mão, prontas para trucidar seus desafetos ao menor sinal de discordância.

Já reparou como existem assuntos praticamente inatacáveis? Experimente, por exemplo, tecer qualquer fiapo de crítica negativa ao filme “O Senhor dos Anéis” dentro de um grupo nerd. Experimente defender a tese que Tarantino é um enganador, por exemplo. Experimente dizer que determinado filme sobre Holocausto não é tão bom assim. Experimente e verás a ira dos insanos desabar sobre sua cabeça.

Entre os temas inatacáveis, existe um em particular que é o mais inatacável de todos, neste nosso confuso início de século 21: cães. Já há algumas décadas estes animais de estimação vêm conquistando na sociedade urbana contemporânea um crescente status de divindade que vem minando gradativamente  os limites do bom senso. Pode reparar. Questione qualquer assunto – racismo, religião, futebol, política, o que for – e as opiniões sempre estarão mais ou menos divididas, dependendo do grupo social. Mas questione o assunto cães para ver o que acontece. Tente.

É sob o signo desta obsessão canina que vivemos atualmente que produtores húngaros, alemães e suecos se cotizaram para lançar o filme “White God”, onde os cães são os protagonistas. Veja bem: é White God, e não White Dog, mesmo que para muitos signifique a mesma coisa. No registro da fábula e da fantasia, o filme narra a história de uma adolescente que é forçada pelo pai a abandonar seu cachorro, Hagen, nas ruas de Budapeste. Solitário e torturado, Hagen acaba liderando uma revolta canina contra os humanos, numa metáfora simplista da violência como fator gerador de mais violência.

 

O material promocional internacional de “White God” diz que o filme segue a mesma linha de “Os Pássaros”, de Hitchcock, o que é, no mínimo, um caso flagrante de propaganda enganosa, além de uma heresia cinematográfica. Ainda que produzido, dirigido e interpretado com correção, “White God” não tem uma infinitésima parte da habilidade narrativa, nem da inventividade, muito menos da genialidade cinematográfica de “Os Pássaros”. Nem de nenhum outro filme razoável de suspense. É, sim, uma parábola bem realizada que critica a intolerância contemporânea, enfatizando a violência como elemento corruptor e desestabilizador da sociedade. E como tal merece sua parcela de aplauso. Porém, com centenas de cães sob suas lentes (274, para ser mais preciso, um recorde no cinema), “White Dog” obteve uma superestimada repercussão mundial, obtendo indicações e premiações em vários festivais pelo mundo e um inexplicável prêmio principal na prestigiada mostra Un Certain Regard, em Cannes. Foi também o filme selecionado pela Hungria a participar do Oscar de produção estrangeira do ano passado (este ano o país apresentou “O Filho de Saul”, conseguindo a indicação).

Também em Cannes, “White God” venceu o Palm Dog, premiação que  existe desde 2001 e é destinada, acredite ou não, ao melhor ator canino dos filmes da Seleção Oficial do Festival. Só para confirmar o que eu disse sobre obsessões e divindades, nos parágrafos anteriores.

A estreia é nesta quinta,25/02.