“A POSSUÍDA” E O RETRATO DE UMA ÉPOCA.

Há um fascínio todo especial nos filmes americanos produzidos antes de 1934. Mais ousados e menos conservadoras, várias obras produzidas por Hollywood naquele período conseguiam discutir temas que dificilmente seriam abordados pela indústria americana nas décadas posteriores. Motivo: foi em 1934 que o infame Código Hays de censura (que havia sido colocado em prática quatro anos antes) passa efetivamente a ser imposto com mais rigor. Foi a partir daquele ano que o cinema produzido nos EUA entrou numa verdadeira era das trevas que só foi encerrada em 1968, quando o Código Hays foi substituído pelo sistema de classificação etária da MPAA (Motion Pictures Association of America). Entre 34 e 68, tudo era proibido, inclusive mostrar casais, embora casados, dormindo na mesma cama. O preço a pagar por tanto falso moralismo foi uma praticamente irreversível infantilização do cinema americano diante de outras cinematografias mais desenvolvidas dramaturgicamente.

Assim, há um sabor todos especial em ver (ou rever) “A Possuída” de 1931, que a Colecione Clássicos está lançando em DVD. O filme foi dirigido por Clarence Brown (que mais tarde faria a “Anna Karenina” de Greta Garbo), embora incrivelmente seu nome não seja creditado nos letreiros. A trama original vem da peça “The Mirage”, de Edgard Selwyn, e fala de Marian, uma jovem interiorana que tem por ambição vencer na cidade grande. Até aí, seria um clichê. A diferença é que a moça (interpretada por Joan Crawford) está mesmo disposta a tudo para se dar bem na vida, até a ser “possuída”, como diz o título, pelo belo milionário Mark (Clark Gable). Este “possuída” não tem nada a ver com filmes de terror, mas sim com a possessão econômica: Marian passa literalmente a ser propriedade de Mark, que a tem como um sensual objeto de cama e mesa. Mais cama que mesa. Em troca de seus favores sexuais, e deixando a tal instituição falida do casamento longe disso, os protagonistas conseguem aquilo o que querem. A lógica do dinheiro fala mais alto num filme impossível de ser realizado depois de 1934.

Ainda que seu desfecho tenda para o moralista, “A Possuída” é um belo e cínico tratado sobre os limites da ética (se é que eles existem), realizado numa época que não volta mais.