“A QUESTÃO HUMANA” É UM DOS GRANDES FILMES PERTURBADORES DO ANO

Não sou favorável a contar muitas coisas sobre a trama de um filme, ao escrever uma crítica. Antes de ser crítico, acima de tudo também sou público, e adoro ver um filme sabendo o mínimo possível sobre ele. As surpresas são maiores; a emoção é maior. Porém, no caso de “A Questão Humana”, serei obrigado a fugir um pouco das minhas próprias regras e revelar alguns segredos do (excelente) roteiro. Se você, assim como eu, também não curte ler textos que tirem o seu prazer de ir ao cinema, minha sugestão é parar por aqui e só retornar a esta crítica após ter visto “A Questão Humana”.

Feita a advertência, vamos lá. Tudo começa com Simon (Mathieu Amalric, o astro de “O Escafandro e a Borboleta”), um psicólogo que atua no departamento de RH da filial francesa de uma grande multinacional alemã. Seu trabalho, como ele mesmo define, é fazer com que os funcionários superem seus próprios limites em prol da maior produtividade possível da empresa. Com poucas palavras e muita criação de clima, o diretor Nicolas Klotz pinta a Corporação com total frieza. Os ambientes são amplos e áridos. Distantes. A fotografia trabalha com tons de azul e cinza. Todos se vestem impecavelmente de preto. Não se percebe sequer um elemento que sugira vida. Muito menos nos rostos daqueles pálidos funcionários que lá estão para serem forçados até o final de seus limites. Em nome da produção, é claro. Como toda Corporação, aliás.

Certo dia, Simon recebe do vice-presidente da empresa uma missão confidencial: investigar a sanidade mental de Mathias (o ótimo Michael Lonsdale, de “Fantasmas de Goya”), ninguém menos que o próprio Presidente do escritório francês da multinacional. Haveria indícios que Mathias estaria agindo de forma estranhamente perigosa e até suicida, causando desconforto nos acionistas. Simon começa sua investigação sem saber que vai ser obrigado a se confrontar com vários fantasmas do passado. Tanto aqueles que habitam os nebulosos porões da época do nazismo, como os que moram dentro de seus próprios medos.

“A Questão Humana” não é um filme de fácil digestão. A sinopse – falando de investigações e nazismo – pode até sugerir uma aventura policial ou coisa parecida. Mas não é nada disso. Com vários níveis e subníveis possíveis de leitura, trata-se uma obra riquíssima, de texto difícil mas fascinante (baseado no livro de François Emmanuel), e que faz uma irresistível provocação. Para o filme, o Nazismo não morreu. Ele apenas mudou de forma e modernamente se apresenta sob a formatação de grandes empresas multinacionais. Os novos uniformes dos prisioneiros agora são alinhados ternos pretos. Abrir uma válvula de gás num campo de concentração é trabalho menos elaborado, se comparado com o dos psicólogos que levam os funcionários à loucura. Relatórios técnicos minuciosamente detalhados que explicavam como transportar o maior número possível de judeus em caminhões, nada ficam a dever à tecnicidade fria dos burocratas de hoje. E se antes se lutava e/ou morria por uma nação, agora quem exige dedicação total até a morte é a empresa onde se trabalha.

Uma viagem do filme? Pode até ser. Mas há como negar? Por estas e por (muitas) outras é que “A Questão Humana” é um filme para se ver, se rever e pensar. Pensar muito. O filme exige paciência do público. Mas recompensa em dobro quem se dispuser a mergulhar nos seus meandros. Caso contrário, veja “O Incrível Hulk”.