A SONORA MOLECAGEM DE “MUSICAGEN.”

O conceituado maestro Júlio Medaglia é convidado a ouvir uma gravação. Coloca os fones de ouvido, se concentra, e passa a contextualizar o que está escutando: “Acredito que seja da época Medieval. Deve ser uma viola da gamba ou coisa assim”. Ao final da audição, surpresa: Medaglia estava ouvindo um violino feito de lata de bombom, que não deve ter custado mais que 1 Real.
A cena está em “Musicagen”, filme que se auto define, como já adianta o próprio material de imprensa, como “um documentário que não pretende explicar nada”. Segundo Nereu Cerdeira, co-diretor ao lado de Edu Felistoque, até o título é uma invenção. Pode ser uma mistura de Música com Molecagem, ou com Sacanagem, tanto faz. “E termina com a letra `n` para confundir mesmo”, diz Cerdeira. “Pode ser também o Gen da Música”, completa Felistoque.

A base chacriniana de confundir mais que explicar é fundamental para embarcar na viagem lúdica proposta pela dupla de cineastas paulistas. Sem se prender a estruturas esquemáticas de um documentário tradicional, “Musicagen” joga idéias, atira conceitos a serem pescados pelo público. Num primeiro momento, investiga a criatividade e a sonoridade de instrumentos feitos a partir de lixo reciclável. Evitando a narração em off e o conhecido enquadramento “talking head” (onde o depoente aparece na tela como uma espécie de “cabeça falante”), o filme coloca para conversar, por exemplo, o pesquisador e luthier Fernando Sardo com o músico e compositor André Abujamra. Busca conceitos e informações de diversos representantes das mais diferentes tendências musicais, de Badi Assad a Seu Nenê de Vila Matilde, passando por Daniel Misiuk ( Maestro do Theatro Municipal de São Paulo, violonista, educador) e o rapper Thaíde. Ouve os clássicos, mistura chiclete com banana e aborda informalmente a indústria musical desde a sua criação até a sua cruel produção industrial. “Essas músicas mais idiotas que são feitas hoje em dia no Brasil são boas para a indústria porque você se enche o saco logo e joga tudo no lixo” diz Medaglia no filme.

A idéia de “Musicagen” nasceu quando Cerdeira e Felistoque filmavam o curta
“Zagati”, em 2003, provavelmente o trabalho mais exitoso da dupla até agora. Como o personagem título do filme é um catador de lixo que trabalha com reciclagem, sugeriu-se na época que toda a trilha do curta fosse feita com instrumentos reciclados. Neste momento a dupla conheceu Fernando Sardo, um especialista neste tipo de som, e o projeto começou a tomar forma, antes mesmo da finalização de “Zagati”. Partiu-se depois para a pesquisa, a investigação, etapas que Felistoque prefere realizar enquanto filma. “Gosto de fazer documentários sobre temas dos quais eu não entendo nada, pois assim eu vou aprendendo durante o processo”, diz o cineasta.
E o filme deixa claro este aprendizado. É um trabalho solto, sem a pretensão de ditar normas nem buscar verdades absolutas. No melhor estilo Eduardo Coutinho (ou Dogma 95, talvez) os cineastas acabam também expondo na tela os seus próprios métodos de trabalho, inventando e se reinventado a cada cena.

Paladares mais formais talvez não curtam o filme, mas se o tema é algo tão livre, leve e solto como a Música, certamente forma e conteúdo caminham juntas nesta saborosa molecagem, digo, Musicagen.