“ALÔ, ALÔ, CARNAVAL”: MARCO DO CINEMA BRASILEIRO, COM MUITA MÚSICA, HUMOR E RACISMO.

Por Celso Sabadin.
 
Circula pela rede mundial de computadores uma cópia de 77 minutos da clássica comédia musical brasileira “Alô, Alô, Carnaval”, produzida em 1936 pela Cinédia, o primeiro grande estúdio cinematográfico do país. Num primeiro momento, a cópia chama a atenção por um texto introdutório que enfatiza seu aspecto histórico, e por legendas indicativas dos astros que surgem na tela durante o filme. Percebe-se assim que não se trata exatamente da versão original exibida nos cinemas nos anos 30, mas sim da restauração realizada em 1974 supervisionada pelo próprio Adhemar Gonzaga, produtor e diretor do filme. Nela, faltam três minutos dos 80 originais que o longa teria, de acordo com a Cinemateca Brasileira, o que não impede uma análise precisa da obra.
 
“Alô, Alô, Carnaval” segue na esteira do sucesso “Alô, Alô, Brasil”, realizado no ano anterior praticamente pela mesma equipe de profissionais. A receita era simples, e abriu todo um filão para o cinema brasileiro. Ambos os filmes foram frutos da associação entre a Cinédia, fundada por Gonzaga em 1930, e a Waldow S/A, do norte-americano residente no Brasil Wallace Downey.
 
Um pouco da história: Downey havia chamado a atenção do mercado cinematográfico brasileiro ao realizar, em 1931, a comédia musical “Coisas Nossas”, sobre dois amigos que tentam realizar uma serenata para a mulher que amam e acabam se metendo em várias situações cômicas. Adaptando para o nosso país a mesma fórmula das comédias norte-americanas do final dos anos 1920, a tênue linha narrativa de “Coisas Nossas” é intercalada por números musicais de nomes famosos no rádio da época, como Francisco Alves e as duplas sertanejas Alvarenga & Ranchinho e Jararaca & Ratinho. Ao colocar nas telas talentos que a enorme maioria do público brasileiro só conhecia através de discos e programas de rádio (vale lembrar que ainda não existia televisão), o filme se tornou um grande sucesso comercial. Mesmo porque o cinema falado, febre nos EUA desde o final de 1927, ainda era novidade por aqui.
 
Gonzaga, que em sua revista “Cinearte” sempre defendeu o cinema norte-americano como um modelo a ser seguido pelo Brasil, convidou então Wallace para uma associação entre as duas empresas, nascendo daí, dentro da mesma fórmula do humor intercalado com números musicais, duas obras seminais da nossa cinematografia: “Alô, Alô, Brasil” e “Alô, Alô, Carnaval”.
 
Em “Alô, Alô, Carnaval”, o argumento de Ruy Costa, Adhemar Gonzaga, Alberto Ribeiro e João de Barro fala de dois autores (Barbosa Júnior e Pinto Filho) que perambulam pela noite carioca tentando encontrar algum patrocinador que banque a montagem de um espetáculo musical que se chamaria “Banana da Terra”. Fim da história. Enquanto se divertem no clube Mosca Azul, os gaiatos são apenas o fio condutor para um punhado de imitações e sketches cômicos que talvez tivessem alguma graça na época, e para – aí sim – a nata do filme: os números musicais. O time que se apresenta em “Alô, Alô, Carnaval” é formado por ninguém menos que Lamartine Babo, Francisco Alves, Joel de Almeida, Alzirinha Camargo, Mário Reis, as Irmãs Pagãs, Dircinha Batista, Bando da Lua, Almirante, Os Quatro Diabos, Mário Reis, Heloísa Helena, a orquestra de Hervê Cordovil e – a cereja do bolo – Aurora e Carmen Miranda interpretando “As Cantoras do Rádio” como número apoteótico final.
E uma curiosidade: o filme marca também a estreia de Oscarito no cinema, num papel pequeno, porém marcante, durante um jogo de roleta.
 
Mesmo com a quase total ausência de coreografia, mesmo com a pobreza dos cenários, mesmo com a gigantesca predominância da linguagem do teatro de revista sobre a linguagem cinematográfica, o público adorava. O que contava mesmo era ver os ídolos ganhando vida e voz diante de seus olhos, porque o cinema era o único veículo que permitia tal milagre, na época.
 
Estava assim inaugurado e consolidado pela Cinédia/Waldow o gênero cinematográfico que representaria a grande massa consumidora do cinema brasileiro até meados dos anos 1960, com o bastão posteriormente sendo passado para a inesquecível Atlântida e suas chanchadas.
 
Lamenta-se, por outro lado, que um filme que se propusesse a difundir a cultura musical popular brasileira, cujo título remetesse justamente ao Carnaval, tivesse desprezado de maneira tão acintosa os talentos cômicos e/ou musicais negros do Brasil. É preciso muito esforço para se enxergar, no segundo plano de alguma orquestra ou grupo musical, algum negro em “Alô, Alô, Carnaval”. No primeiro plano, então, nem pensar.
 
Lamenta-se, mas não se estranha. Afinal, o editorial da Revista Cinearte (de propriedade de Gonzaga) de 11 de dezembro de 1929, já pregava: “Fazer um bom cinema no Brasil deve ser um ato de purificação de nossa realidade, através da seleção daquilo que merece ser projetado na tela: o nosso progresso, as obras de engenharia moderna, nossos brancos bonitos, nossa natureza (…) é preciso o cinema de estúdio, como o norte-americano, com interiores bem decorados e habitados por gente simpática”.
 
Coisas nossas.