AO PROPOR A AUSÊNCIA DO ESTADO, “UMA NOITE DE CRIME” EXPÕE O DESASTRE DO NEOLIBERALISMO.

Quando vi a ficha técnica, estranhei a presença de Ethan Hawke num filme chamado “Uma Noite de Crime”. Afinal, de uma maneira geral, Ethan costuma fazer filmes de qualidade e de alguma consistência. Por que ele estrelaria algo chamado “Uma Noite de Crime”? Puro preconceito meu: ao conferir o filme, percebi que ”Uma Noite de Crime” é apenas o título comercial que a distribuidora inventou para o ótimo e perturbador “The Purge”.

A premissa do roteirista e diretor novaiorquino James de Monaco é genial: num futuro muito próximo (e põe próximo nisso), o governo norte-americano institucionaliza um certo “Dia da Purificação”. Durante um periodo de 12 horas, todos os serviços de emergência serão suspensos (polícia inclusive), para que cada cidadão faça exatamente o que lhe der na telha, sem precisar temer nenhum tipo de lei. Vale matar quem você quiser. Ou seja, é a política do neoliberalismo elevada à extrema potência, onde prevalence a falsidade da meritocracia e a lei do “quem pode mais chora menos”, sem nenhuma intervenção estatal. Evidentemente, quem tem mais dinheiro e pode comprar as armas mais potentes e os sistemas de segurança mais eficazes sai ganhando.
E tem mais: como seguidas edições do “Dia da Purificação” conseguiram eliminar boa parte da população pobre (matando-a, claro), e a venda de armas disparou, aquecendo a economia, a medida é considerada um grande sucesso.
O problema começa quando a lei, feita para beneficiar a elite, começa a se voltar contra ela própria.

Como Cinema, “Uma Noite de Crime” não é um grande filme. Segue a cartilha dos suspenses convencionais, é eficiente na manipulação do medo, mas não vai muito além disso, principalmente para o fã do gênero, que já conhece os caminhos. Mas como discussão política é um prato cheio. Ainda mais neste momento que vivemos de grande polarização ideológica, e de manifestações estranhamente questionáveis pelas ruas.

Mesmo travestido de mero suspense convencional, “Uma Noite de Crime” discute os mais variados tipos de preconceitos sociais, traçando um perturbador painel sociológico e antropológico de uma sociedade consumista que visivelmente apodrece em velocidade exponencial.
Pode render boas discussões, se for visto além de sua superficialidade comercial.

Como não podia deixar de ser, o filme não foi bem nas bilheterias dos EUA.