“AQUI É O MEU LUGAR” TRAZ VISÃO ÁCIDA DA SOCIEDADE NORTE-AMERICANA.

As linhas moderníssimas de uma totalmente reformada Dublin Arena em marcante contraste com uma antiga vila de operários na capital irlandesa são as primeiras imagens do filme “Aqui é o Meu Lugar”. O desenvolvimento da trama mostrará que a bela e plástica cena nada tem de acaso. O choque entre épocas, o conflito e a convivência entre gerações, a estranheza dos diferentes tempos humanos, tudo isso está no cerne de “Aqui é o Meu Lugar”, filme que mostra que a expressão “magnífica interpretação de Sean Penn” já está virando redundância.

Ele vive o papel de Cheyenne, um fictício astro da música pop que saiu do mercado há 30 anos, mas que continua se vestindo como se estivesse sobre os palcos dos anos 80. A maquiagem pesada, a fala mansa, a voz tímida e os gestos contidos ajudam a esconder traumas do passado, mas uma cena muito particular acontecida num supermercado mostra que Cheyenne ainda tem dentro de si algum resquício de ira represada.

Os primeiros momentos do filme são preciosos ao criar a ambientação do personagem através de uma apaixonante galeria de tipos coadjuvantes. Há a vizinha catatônica em eterna espera pelo retorno do filho; a amiga gótica e o jovem garçom, fã de Mariah Carrey, que empreende sobre a garota um cortejo dos mais improváveis. Há uma lápide misteriosa e, principalmente, há Frances McDormand, atriz que imprime uma espantosa dignidade em todo e qualquer papel que interpreta, vivendo a esposa de Cheyenne.

As aparentes paz e segurança que Cheyesse vivencia em Dublin são repentinamente quebradas por um dos mais recorrentes recursos de roteiro cinematográfico: a obrigatoriedade da volta para casa e o consequente enfrentamento compulsório com sentimentos adormecidos.
Ainda que o retorno ao lar – Nova York – seja urgente, o protagonista opta pela viagem de navio, que tem o vagar mais condizente ao seu estado atual de semi-letargia. Ou talvez intimamente ele acredite que voltar devagar adiará infindavelmente o inevitável enfrentamento. A postura de Cheyenne faz lembrar a música de Almir Sater: “Ando devagar porque já tive pressa, trago este sorriso porque já sofri demais”.

Mesmo transferindo a ação da Irlanda para os Estados Unidos, onde o filme assume ares de Road-movie, o roteiro continua encantando com mais coadjuvantes fascinantes: um caçador de nazistas que se diz preocupado unicamente em recuperar os dentes de ouro das vítimas do Holocausto, um garoto órfão de pai militar que tem medo de entrar na água, o homem que se diz inventor das malas com rodinhas, um texano profundamente apaixonado pela sua camionete, e assim por diante. Em cada um deles, uma observação ácida contra os mais variados viéses da sociedade americana, desde a venda indiscriminada de armas até o culto incondicional por objetos de consumo, passando pela destruição de famílias vitimadas pelas guerras. Cheyenne parece observar a tudo e a todos com olhos de Forrest Gump, alienados por um lado, mas atentos por outro.

O diretor italiano Paolo Sorrentino, também autor do roteiro, sublinha este clima de fábula bizarra, que até flerta com o realismo fantástico, escancarando suas lentes grande angular em longos e abertíssimos planos generosos, cores vibrantes, reconfortantes silêncios e mais que bem-vindas pausas para reflexão.

Os conflitos de tempos e gerações permeiam toda a ação. Fantasmas da Segunda Guerra voltam para assombrar um ex-ídolo pop que compra uma briga que não é a sua para tentar apaziguar o próprio luto interno que nutre há décadas por um pai morto. Ao mesmo tempo em que um garotinho, cujo pai também morreu numa guerra americana, confunde a criação com o cover da criação, vitimado por uma sociedade que prioriza o consumo rápido e os valores imediatos. E quando a mãe deste menino tenta seduzir o velho ídolo, ouve dele uma resposta que a nova sociedade tacha de improvável e fora de moda: “Não posso fazer amor com você porque sou casado”.

“Aqui é o Meu Lugar” é assim. Despeja sobre os espectadores um sem número de textos e sub-textos, de leituras e sub-leituras, num emaranhado de interpretações possíveis que o público médio se desacostumou a sequer tentar perceber, vitimado que está por um cinema de consumo rápido que prioriza a pipoca sobre o roteiro.

Certamente, é um dos melhores filmes do ano.