ARONOFSKY FAZ DE NOÉ UM VEGANO AMBIENTALISTA ECOCHATO.

Noé
Por Celso Sabadin

Existem normas na gramática norte-americana de se fazer blockbuster que não podem ser contrariadas. Uma delas reza pela cartilha que todo e qualquer roteiro terá de ser necessariamente reduzido a uma briga do Bem contra o Mal. “Noé” não foge desta regra. Mesmo porque, pelo montante investido, os produtores não deixariam passar nenhum tipo de subversão às normas, já que no cinemão comercial o medo de errar é muito maior que a vontade de acertar.

Assim, logo nos letreiros iniciais, já fica bem explicado que o personagem título é descendente direto de Set, o filho bacana de Adão e Eva. O oponente de Noé, claro, será descendente de Caim, que matou Abel, e logo é do mal. Ou seja, fica estabelecido desde o começo quem usa chapéu branco e quem usa chapéu preto neste filme.
Dito isso, parte-se para a aventura propriamente dita, aquela que todos queremos ver: a arca, os animais e o dilúvio. Afinal, estamos aqui para isso, certo? Calma. A primeira parte do filme é dedicada a explicar exatamente o que está acontecendo: Noé, por ser “do bem”, tem uma ligação direta com Deus, que se comunica com ele através de sonhos. Não são sonhos fáceis e diretos, mas metáforas que terão de ser interpretadas. Para isso, Noé recorre à ajuda de seu sábio avô, Yoda… desculpe, Matusalém, vivido por um Anthony Hopkins que não recusa nenhum papel, e que parece se divertir cada vez mais a cada filme.

Ambos acabam por decifrar os sonhos enigmáticos enviados por Deus: como a Humanidade está perdida e o Criador percebe que não há mais salvação para o Homem, ele mandará um tsunami global para acabar com tudo. Caberá a Noé construir uma enorme arca para salvar apenas os animais, considerados criaturas puras e sem pecados. Sim, tem isso também: no filme, Noé é um vegano ecochato ambientalista, espécie de precursor do Greenpeace.

Muito estranharam a presença de gigantes falantes feitos de pedra num filme baseado na Bíblia. O que não me incomoda nem um pouco, talvez até por isso mesmo: se a Bíblia diz que uma cobra tentou Eva com uma maçã, e por causa disso ela e o marido Adão foram expulsos do Paraíso, e mais, que eles tiveram três filhos homens que deram origem a toda Humanidade (como assim?), quem sou eu pra ficar aqui criticando as licenças poéticas de Darren Aronofsky? Cada criador com suas liberdades narrativas.

Bom, devidamente inundado o mundo, o roteiro parte para uma segunda etapa que transformará “Noé” de um filme-catástrofe para um drama familiar. E põe drama nisso. Noé está disposto a cumprir ao pé da letra o que Deus lhe mandou fazer, ou seja, acabar com toda a Humanidade. O que incluiria, claro, ele próprio e sua família. Mas depois de sobreviver a todos os percalços da inundação, a família não está nem um pouco com vontade de abrir mão da tão preciosa vida, e o conflito muda de rumo, colocando irmão contra irmão, marido contra mulher, cunhado contra todo mundo (bom, isso é normal), e fazendo daquela arca um microcosmo de todos os desentendimentos familiares futuros pelos quais o mundo passará. Mesmo porque, como se sabe, a Humanidade não acabou por ali.

Como não podia deixar de acontecer num filme baseado na Bíblia, principalmente no Velho Testamento, “Noé” é inundado por conceitos de culpa, punição, sacrifícios e maldade, muita maldade emanada de um Deus vingativo que nunca aceitou muito bem aquela história da maçã, e que vive tentando descontar na Humanidade a sua própria frustração por não ter feito do Homem um projeto mais elaborado e evoluído.

Conflitos dos quais o cinema sabe muito bem como se aproveitar.

Ah, como quase sempre, o 3D acrescenta muito pouco, quase nada.