“AS HISTÓRIAS DE MEU PAI”, O OVO DA SERPENTE FAMILIAR.
Por Celso Sabadin.
Virou uma espécie de hábito literário, sempre que se deseja falar das origens das ideologias autoritárias de direita, citar o ótimo “O Ovo da Serpente”, que Ingmar Bergman dirigiu em 1977. A citação é mais que justa, pois o longa exala raro talento ao mostrar os caminhos políticos que deram origem ao fascismo e ao nazismo. Há, porém, um outro “ovo de serpente” a ser considerado, além do político: o familiar. Afinal, tais insanidades destas ideologias não surgem apenas no campo dos bastidores do poder, mas também (ou talvez antes e principalmente) nos meandros familiares. Quem participa de grupo de família no whatsapp sabe muito bem.
“As Histórias do Meu Pai” – que estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 09/02 – aborda exatamente este nascedouro.
A partir do livro “La Légende de nos Pères”, publicado em 2009 por Sorj Chalandon, o roteiro de Murielle Magellan e do próprio diretor, Jean-Pierre Améris, investiga como os chamados “passar pano pra fascista” ou “bater palma pra louco dançar” podem ser destrutivo.
Na França dos anos 1960, André (Benoît Poelvoorde) se mostra extremamente irritado e descontente com as atitudes que Charles De Gaulle tem tomado em relação à guerra com a Argélia. Ele grita, xinga, esperneia, em visíveis crises de descontrole emocional. Em momentos mais sossegados – pero no mucho – dedica-se a contar histórias mirabolantes sobre sua própria bravura ao filho Émile (Jules Lefebvre), de 12 anos. O menino se encanta. A esposa, Denise (Audrey Dana), faz vistas grossas. Ela própria busca vários motivos para exercer sua isenção: não quer decepcionar o filho, tem medo do marido violento, argumenta que ele é neurótico de guerra, e assim por diante. Sempre existe uma desculpa para que atitudes não sejam tomadas. A grande questão é que as insanidades mentais que levam uma pessoa ao fascismo nunca se amenizam. Pelo contrário. E os problemas desenvolvidos dentro deste pequeno núcleo familiar acabam assumindo proporções incontornáveis.
Além do já citado comportamento das vistas grossas diante da tragédia anunciada, duas leituras se sobressaem neste drama afetivo/político/familiar: (1) a extrema covardia que toma conta do falastrão André, sempre que ele é confrontado por forças maiores das que ele consiga enfrentar e (2) a maneira inexorável como tudo acaba estourando em cima do mais fraco, no caso, do refugiado (não é spoiler).
Sensível, tenso e angustiante, “As Histórias do Meu Pai” estreou na França em 2020, mas a ascensão da direita em todo o mundo, nos últimos anos, torna o filme extremamente (e infelizmente) atual.
s (Coco antes de Chanel). A trama se passa no começo dos anos de 1960, e André conta ao filho suas grandes peripécias, como campeão de judô, paraquedista, jogador de futebol, espião, e, em especial, Conselheiro de Charles de Gaulle.
Chega o momento da missão mais importante de André, e ele pede ajuda ao seu filho que deverá se arriscar por seu pai. Mas, e se as histórias do pai forem mentirosas?, começa a se questionar Émile. A mitomania do protagonista é vista com ingenuidade e algo de lúdico pelo olhar do filho.
O cineasta conta que o livro é muito mais soturno, mas, para o filme, já no roteiro, ele mudou um pouco o tom, aproximando-se também da comédia. “Eu queria que o filme tivesse uma espécie de fantasia que ecoasse a loucura desse pai. Inventar sua vida, às vezes pode ser mais alegre do que a vida real.”
Ele aponta, no entanto, que há um lado bastante dramático, sério no filme, sobre um pai que abusa de seu filho psicologicamente. “O pai não quer destruir seu filho, nem apagá-lo. Ele quer arrastá-la para sua loucura, para um mundo de pura ficção, mas o que acaba sendo perigoso. Tudo isso para não ficar sozinho ali, para ter um amigo. Você precisa de um ouvinte mitomaníaco. Ele aparece como um herói aos olhos de seu filho, que quer fazer de tudo para estar à altura. E a criança não consegue perceber isso, ela não tem as ferramentas.”
Desde o início, Améris conta que tinha Poelvoorde como protagonista de AS HISTÓRIAS DE MEU PAI. “Na verdade existe um medo hoje de fazer o papel de um homem que humilha a esposa e bate no filho. Mas se os atores não estão ali para encarnar a escuridão humana, tudo desmorona. E Benoît faz isso muito bem, pois esta também é a nossa humanidade. E Benoît, sem salvá-lo, o torna humano. O pai é um homem sobrecarregado consigo mesmo e que sobrecarrega aqueles que o cercam. Ele tem medo de não ser ouvido.”
O filme aborda “não apenas o impacto duradouro da Guerra Franco-Argelina e suas consequências, mas também o impacto da saúde mental e do trauma em uma família quando uma (ou ambas) das pessoas que sofrem são pais. É uma área difícil e abrangente de cobrir, mas é feita de uma maneira que ainda há esperança – para aqueles que passaram por isso e para aqueles que ficaram para trás”, diz o site Franco Files UK, sobre o AS HISTÓRIAS DE MEU PAI.
O elenco do filme conta ainda com Audrey Dana, Martine Schambacher e Nicolas Bridet. A produção é assinada por Olivier Delbosc (8 Mulheres). Na equipe artística estão Pierre Milon, na direção de fotografia; Quentin Sirjacq, assina a trilha sonora; e Anne Souriau, a montagem.
AS HISTÓRIAS DE MEU PAI será lançado no Brasil pela Pandora Filmes.
Sinopse
André Choulans é um homem que tem diversas profissões, e é idolatrado por seu filho, especialmente depois de se tornar conselheiro de Charles De Gaulle. Quando acha que foi traído por ele, pede ajuda ao garoto para matar o general.
Ficha Técnica
Direção: Jean-Pierre Améris
Roteiro: Jean-Pierre Améris e Murielle Magellan, do livro de Sorj Chalandon
Produção: Olivier Delbosc
Elenco: Benoît Poelvoorde, Audrey Dana, Jules Lefebvre
Direção de Fotografia: Pierre Milon
Desenho de Produção: Pascaline Pitiot
Trilha Sonora: Quentin Sirjacq
Montagem: Anne Souriau
Gênero: comédia, drama
País: França
Ano: 2020
Duração: 105 min.

