AS VÁRIAS MORTES DE “ELIS”.

Por Celso Sabadin.

Fui rever “Elis”. Gostei ainda mais do que da primeira vez. Ao mesmo tempo em que enfoca e esmiúça o drama pessoal da protagonista, o filme desenvolve a história de uma morte paralela que afetou e continua afetando a todos nós: a falência múltipla, com perda da atividade cerebral, da música brasileira em particular e da nossa cultura em geral.

Não por acaso o filme começa exatamente em 1º de abril de 1964, dia em que os “gorilas” assumiram o poder no Brasil, “sem querer ofender os gorilas”, como diz a protagonista. Vê-se a agitação musical do Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, que conhece o ocaso de uma Bossa Nova que poucos anos antes havia rompido fronteiras e colocado o Brasil no mapa musical mundial. Vê-se o nascimento da MPB impulsionada por inesquecíveis festivais, num primeiro momento da TV Excelsior, e depois na Record. Eventos que revelaram uma geração de intérpretes e compositores que não apenas marcou época com o também permanece até hoje como marco indelével da força, da qualidade e da brasilidade da nossa cultura.

Vê-se também, personificada na rápida e marcante interpretação de Aramis Trindade, a ignorância do militarismo truculento que dominava o país na época. Percebe-se a ruptura, a quebra que leva uma nação  democrática a tombar, a jogar um contra o outro, a censurar e a autocensurar, a exilar talentos. Vê-se o mercado da música brasileira sucumbir aos interesses das gravadoras multinacionais, agora com tapete vermelho estendido aos seus pés graças aos capachos dos novos donos do poder. É o colapso político, moral, financeiro e cultural de toda um povo.

Ao final de “Elis”, muitos espectadores têm os olhos vermelhos. São lágrimas pela perda da grande cantora, sim, mas elas estão misturadas à tristeza de inúmeras outras mortes. A Record, por exemplo, palco sagrado dos grandes festivais, hoje é comandada por uma facção religiosa. A Excelsior não existe mais faz tempo. Nem sei no que se transformou o Beco das Garrafas num Rio de janeiro pós-Olimpíadas. A música brasileira está há décadas na UTI, assim como a nossa cultura e a nossa educação, todos vitimados por vorazes invasões de mercado. E a bestialidade política voltou, se não de farda, de paletó, gravata e microfone.

Na parede da memória, todas estas lembranças que “Elis” evoca formam  – o quadro que dói mais. Quem me dera, agora, eu tivesse a viola pra cantar.