ASSISTA A “SERRA PELADA” DE OLHOS BEM ABERTOS E OUVIDOS BEM FECHADOS.

Não tenho certeza se foi a Fernanda Montenegro, mas alguém importante falou, não faz muito tempo, que não temos nem ideia do quanto as nossas telenovelas têm prejudicado a dramaturgia audiovisual brasileira. Talhadas para agradar à maior quantidade possível de pessoas, autodescritivas, autoreferenciais e muito mais auditivas que visuais, as telenovelas são feitas para um público que tem o hábito mais de escutá-las que propriamente vê-las, como uma espécie de extensão (pouco extensa) das antigas radionovelas. Daí a quantidade de cenas resolvidas através da palavra oral em detrimento à cognição da imagem, resultando numa dramaturgia pobre.

O problema é que esta forma oral de se criar imagens tem contaminado, e muito, a produção cinematográfica brasileira. O exemplo mais recente disso é “Serra Pelada”, que tinha tudo para ser mais um ótimo filme nacional ocupando as nossas telas, mas que acaba até incomodando o espectador mais cinéfilo, ao interromper repetidamente a narrativa para explicar, com voz em off, o que está acontecendo na trama. Em vários momentos me senti participando de uma sessão com audiodescrição para deficientes visuais.

O que mais se lamenta nesta falta de confiança nas próprias imagens é que “Serra Pelada” conseguiu o mais difícil: desenvolveu grandes personagens otimamente interpretados (Wagner Moura, Juliano Cazarré, Julio Andrade, Sophie Charlotte e Mathes Nachtergale estão perfeitos), recriou no interior de São Paulo o cenário ideal reproduzindo fidedignamente a região do antigo garimpo, criou um ótimo roteiro repleto dos mais interessantes conflitos, desenvolveu riquíssimos personagens coadjuvantes, encontrou com eficiência um marcante estilo visual, e obteve com sucesso um ótimo ritmo de montagem e direção.

Por que, repito, por que então interromper a fluência do que poderia ser um dos grandes filmes brasileiros deste ano, praticamente de 10 em 10 minutos, para que uma voz em off nos tire do universo mágico criado pelas imagens e nos arremesse na mesmice de um blá-blá-blá oral que poderia ter sido tão facilmente evitado? Por que mostrar tantas cenas de telejornais enfatizando que “milhares de pessoas foram em busca do ouro em Serra Pelada”, e repetir tudo isso, de novo, no texto em off e nas falas dos personagens? Por que dizer que “fulano é meu amigo de infância” na voz do protagonista e repetir novamente a mesma informação no texto em off? Aliás, por que um texto em off? Falta de confiança no poder das imagens ou na falta de percepção das plateias? Será que os realizadores nivelaram o público por baixo, assumindo que a trama não seria compreendida se ela não fosse “desenhada” para as grandes audiências?

Uma das maiores críticas que se fez à recente versão de “O Tempo e o Vento” é que ele já estaria pré-formatado para uma minissérie de TV. Podemos dizer que “Serra Pelada” também já está pré-formatado, mas para uma novela… de rádio.
Uma dica: vá ver o filme, que realmente está a um passo do espetacular, e tape os ouvidos de dez em dez minutos. Vai melhor muito a sua experiência cinematográfica.