BASEADO EM FATOS, “UM CRIME AMERICANO” É PERTURBADOR.

Quase sempre acontece. Algumas distribuidoras se aproveitam do fato de este ou aquele ator conseguir algum tipo de sucesso rápido e imediato para logo em seguida garimpar filmes anteriores deste astro e lançá-lo nos cinemas como novidade. Felizmente, embora possa parecer, essa estratégia pouco ética não é o caso do drama “Um Crime Americano”.

Sim, o filme é protagonizado pela canadense Ellen Page, repentinamente guinada à categoria de “estrela da hora” após sua indicação ao Oscar de melhor atriz por “Juno”. Sim, “Um Crime Americano” – exibido no Sundance Festival em janeiro de 2007 – é anterior a “Juno”, que só foi estrear nos circuitos dos festivais internacionais em setembro. Mas, não, “Um Crime Americano” não é um filminho qualquer garimpado por alguma distribuidora apenas para pegar carona no sucesso de Page. O filme tem, sim, suas qualidades. E não são poucas.

O roteiro é baseado numa história verídica que chocou o conservador estado de Indiana, nos Estados Unidos, em 1965. Naquela ocasião, um casal de artistas circenses, constantemente em viagem pelo país, decide deixar suas duas filhas – Sylvia (Ellen Page) e Jennie (Hayley McFarland) – sob os cuidados da dona de casa Gertrude (Catherine Keener), supostamente uma mulher respeitável que teria condições de cuidar das garotas com a estabilidade de um lar fixo, em contraposição ao ir-e-vir das lonas de um circo. Os pais de Sylvia e Jennie, porém, não sabiam que estavam entregando as suas filhas a uma mulher completamente desequilibrada emocionalmente. Quando Sylvia começa a questionar a autoridade e os métodos de Gertrude, tem início um verdadeiro inferno das mais impensáveis torturas e atrocidades contra a garota. O que se verá a seguir chega às raias do inacreditável. Principalmente para um filme baseado em um caso real.

Não é apenas o que acontece entre as quatro paredes da residência de Gertrude que pode ser considerado inacreditável. Uma das críticas que o filme faz dirige-se diretamente contra o isolacionismo das pessoas – próximas ou distantes – que se mostram cada vez mais incapazes de perceber e/ou interferir em fatos que, teoricamente, não lhe dizem respeito. Isso, em 1965.
Que dirá hoje…

Chama a atenção no filme a eficiência do estilo cru, simples e direto do diretor Tommy O’Haver. Quem viu os trabalhos mais recentes desse cineasta – os juvenis “Volta por Cima” ou “Uma Garota Encantada” – dificilmente poderia imaginá-lo num filme tão visceralmente cruel. O’Haver opta por uma narrativa enxuta, evitando qualquer tipo de penduricalho ou rebuscamento cinematográfico, como que admitindo que os fatos por si só já são suficientemente escabrosos para que exista a necessidade de estilizá-los, de alguma forma, ainda mais. Novamente, o menos é mais.

Para chegar a esse resultado, “Um Crime Americano” tem pelo menos dois méritos bem definidos, sendo um de roteiro e outro de direção. O de roteiro reside no fato de os diálogos ambientados no tribunal terem sido quase que 100% retirados da transcrição oficial dos autos do julgamento, o que confere uma veracidade quase documental ao filme. E cabe à direção o mérito de tudo ter sido filmado rigorosamente em ordem cronológica, de maneira que a tensão e o horror crescentes que se instala nos personagens (e, conseqüentemente, no público) sejam igualmente vivenciados pelos atores durante o processo de filmagem. Mesmo porque, a maioria do elenco – formada por jovens – jamais tinha ouvido falar do caso real. A própria Ellen Page fez questão de emagrecer visivelmente durante as semanas de filmagens, para que ficasse visível na tela as provações pelas quais passaram seu personagem.

Diz uma das lendas de Hollywood (e elas são muitas) que, quando o diretor questionou Ellen sobre seu emagrecimento, ela teria respondido: “Ninguém está dando de comer a Sylvia”.

Coincidentemente ou não, o filme “Jack Ketchum’s The Girl Next Door”, que estreou nos EUA no ano passado e permanece inédito no Brasil, trata exatamente do mesmo caso.