“BEIJOS PROIBIDOS” BUSCA O ESCAPISMO EM MEIO AO CAOS.

Por Celso Sabadin.

Em certo momento de “Beijos Proibidos”, o jovem Antoine (Jean-Pierre Léaud, o eterno alter ego do diretor François Truffaut), se espanta quando sua ex-namorada Christine (Claude Jade) lhe diz que irá a uma manifestação política. A ideia, para o rapaz, é simplesmente impensável. Isoladamente, a cena não tem maiores consequências dramatúrgicas à obra, mas é notável como este momento curtíssimo do filme é capaz de representar toda uma situação histórico-cinéfila.

“Beijos Roubados” foi rodado por Truffaut entre março e abril de 1968, momento em que o diretor – em conjunto com vários colegas – se engajava numa exaustiva batalha política para reverter uma determinação governamental que exonerava Henri Langlois do comando da Cinemateca Francesa. Verdadeiro ídolo para algumas gerações de cineastas, Langlois não era apenas um dos fundadores da Cinemateca, como também um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da cinefilia francesa do pós Guerra, promovendo mostras, debates e exibindo filmes clássicos e raros para a juventude. Quando o governo conservador de DeGaulle decidiu exonerá-lo, a cena cinematográfica francesa se incendiou, sendo Truffaut um dos principais pirotécnicos.

Estabeleceu-se, assim, um pequeno paradoxo na vida do cineasta, que nunca foi muito afeito à política: enquanto à noite ele ajudava a comandar manifestações e atos a favor de Langlois, durante o dia ele filmava “Beijos Roubados”, uma comédia romântica protagonizada por um jovem que se assusta só em saber que alguém vai a manifestações.

Passa abril, Langlois é readmitido na Cinemateca, e logo vem o mais que explosivo maio de 1968. Exausto, agora Truffaut não se engaja.

Corta para agosto do mesmo ano. Festival de Avignon, França. O filme que encerra o evento é justamente o ainda inédito “Beijos Proibidos”, que causa grande alvoroço e polêmica. O Festival é acintosamente questionado: o país pegando fogo e Truffaut, um dos nomes mais importantes da Nouvelle Vague, apresenta um romancezinho de um rapazinho que quer ser detetive particular?

O mundo caiu na França, como aliás vinha caindo quase todos os dias, naquela época. As críticas são cruéis, e Truffaut – não pela primeira vez – é taxado de alienado.

No mês seguinte, quando “Beijos Proibidos” entra no circuito comercial parisiense, ele se torna sucesso de bilheteria. Talvez exaurido e na ressaca dos movimentos sociais dos meses anteriores, o público acolheu com paixão e carinho a comédia romântica do rapaz que não queria participar de movimentos sociais. O longa encantou a França e atravessou o Atlântico. Fez sucesso em Nova York, foi indicado na categoria de filme estrangeiro tanto no Bafta como no Oscar, e salvou as finanças da Films du Carrosse, produtora de Truffaut, que não andava bem das pernas desde os maus resultados de “Farenheit 451”.

Provavelmente o mundo estivesse precisando de um pouco de escapismo, naquele momento.

Quanto à obra em si, trata-se da terceira vez que Jean-Pierre Léaud encarna o personagem Antoine Doinel, o mesmo que causara furor em Cannes, quase 10 anos antes, em “Os Incompreendidos”. A segunda havia sido em “Antoine et Colette”, episódio do longa “Amor aos 20 Anos” (1962).

Agora, dando baixa no exército, Antoine tenta ganhar a vida como agente secreto, função que o coloca em vários momentos cômicos e constrangedoras, ao mesmo tempo em que não sabe como dar prosseguimento ao seu bizarro relacionamento com Christine, sua namorada bate-e-volta.

O maior mérito do filme é a fluidez. A leveza com que os personagens de Truffaut transitam por situações limítrofes aos verossímil, a construção de personagens tragicômicos, o frescor despreocupado da narrativa, o desempenho de todo o elenco, tudo isso faz de “Beijos Proibidos” um agradável momento de descontração em meio ao citado panorama social tão conturbado.

Como sempre, o diretor segue sua linha de tintas autobiográficas, ainda que não necessariamente estritas à realidade dos fatos. E aproveita para inserir pequenas autorreferências à própria obra, como por exemplo mostrar o protagonista lendo “A Sereia do Misssisipi”, que seria seu próximo filme. Há até um “cross-over” (na época em que o termo nem era assim utilizado) com “Antoine et Colette”, no momento em que o rapaz encontra por acaso a sua companheira do filme anterior (Marie-France Pissier), agora já casada e com filho.

Sempre inseguro e perdido, o protagonista abre caminho aqui para sua quarta atuação no mesmo papel, que aconteceria em “Domicílio Conjugal” (1970).

“Beijos Proibidos” está disponível em DVD no Brasil pela Versátil.