“BRASIL S/A” PROVOCA UMA SINFONIA DE QUESTÕES.

Por Cid Nader. 

Pensar em Brasil S/A como apêndice, extensão mais completa e elaborada do que foi o último curta de Marcelo Pedroso, o pancadaça na moleiraEm Trânsito, tanto pode ser justo e um acerto – porque há aqui todo o desenvolvimento estético de aspectos criados especificamente para o curta, o que acarretou repetições de situações, mas em maior escala (como se naquele tivessem sido feitos testes, e nesse chegara a chance de se colocar em prática tudo, já arredondado e azeitado para obra maior – afinal, temos aqui, além do longa a evidente sensação de estarmos diante de sinfonia, por diversos aspectos) -, quanto pode de maneira injusta reduzir a importância de cada um, em suas individualidades. Primeiro, porque Em Trânsito trabalha de modo preciso a concisão que é do período de vida em tela de curtas-metragens, obedecendo a exigência de dinamismo e rapidez de soluções, e repleto de imaginação para tal (se bem que por ausência de imaginação farta o longa não padece: mesmo): além de ser linda demais a certeza de curta-metragem também é cinema, né? E, mais especificamente, o curta coloca cara e nome no que é de ataque, no que é de ser denunciado, talvez contendo mais seus petardos ao estado de Pernambuco: ao que é da instituição política de lá, dos anseios do emergente que salta do fundo do poço para se transformar em mais um globalizado.

Segundo, porque Brsil S/A o “espectro” a ser alcançado se abre muito mais, mira todo o Brasil (num sentido de alertar para que está na instituição o modelo que proporciona os incômodos que tanto afligem Pedroso – que é um que se traveste do que é do povo, que assume a função de ponta, do que vai guerrear -, e que espirra os respingos que também sujam seu Recife e cercanias), podendo ser mais gentil na utilização do tempo, e fazendo do espaço maior campo para mais detalhamentos ou mais flanar, setor em que pode exercer mais alongadamente os modos optados para denunciar, ou clamar, ou temer, ou…, sendo que ao mesmo tempo continua usando algo das funções que cabem bem nos curtas, como, por exemplo, em nenhum momento se valer do “subterfúgio” da palavra (lembrando que no curta, ao contrário, o que deflagra a ação do protagonista é uma ligação telefônica automática de propaganda política). Temos dois filmes que talvez sejam gênese e derivação, mas que existem com todas as gamas possíveis de riquezas desde seus espaços.

Indo ao longa, então, especificamente, e deixando de lado o restante de sua obra, vale lembrar que o diretor é sujeito provocador desde sempre, desde os modelos inusitados que sempre buscou para cumprir essa sua sina, e que desta vez parece ter ido ao máximo do máximo dentro do que entende como cinema – que está bastante distante das elaborações de exageros superficiais no apuro estético, por fazer da estética algo muito mais particular, em favor da fluidez de suas narrativas; que reside num modo irônico muito próprio que usa para entrelaçar as partes, mas sempre com sorriso camuflado, deixando o espectador mais desatento às sutilezas irônicas sempre tentando “mágicas”, elucubrando a mais, para compreender a mais do que a própria linguagem à primeira vista entrega já quase de maneira pronta. Porque há no filme a construção que inicia magicamente (com imagem espetacular de trecho de navio cargueiro singrando mares em direção de Pernambuco), de onde desembarcarão peças que roubam espaço do que já vive fracamente cortando cana; peças que serão espetacularmente seguidas por imagens aéreas de força impressionante, sob acompanhamento to de trilha sonora que pelo resto forçará a certeza de que estamos diante de uma sinfonia; peças que substituirão, “lindas, lustrosas, engenhosas”, o ser humano, que poderá ser posto de volta ao que seria de seu ambiente, que remará, que estará no rio, na lama, na cidade (símbolos mil de diversos pernambucos se avolumam num dado instante).

Há mais do filme próprio em si (um longa, isolado do curta), que permitirá a incongruência do desejo pela “comodidade” do carro particular (juro que me parece até – chutando – que uma cena num caminhão e tal talvez tenha sido presenciada pelo diretor ou alguém seu próximo) tentado ganhar a rua a partir de um mais edifício (que aqui surgem espantosos, opressivos, por tomadas incríveis e abundantes no quadro. e mais uma vez como a maior peça símbolo do mal dos recifenses); que na mata ouvirá os bichos e as máquinas (ah, essas incongruências…); que na mata subjugada pela plantação invasora verá a dança do que perde, e seu facão, a chance de chupar a cana e cortá-la; e que cria, com essas canas mesmo,, um caminho para conduzir o corte da máquina que lhe usurpou – lembrando que os bichos já haviam sido usurpados antes; que na mata subjugada novamente regerá essas máquinas (como já era em singular no em Trânsito); que criará estranheza maior com os negros esbranquiçados na marra, e de trajes de “épocas” coloniais (sempre fomos colonizados, por diversos modelos de colonização); e, e, e… Muitos atos técnicos de concepção elaborada para dar vida em tela aos fatos abordados.

Ele dá nomes aos que acusa, sempre aponta o dedo reto direto na cara de quem é isso “do mal” que tanto lhe aflige, que tanto deturpa a vida, que vem em coadunação ao preceito de crescimento econômico da maneira mais dolorosa e dura, mais ferrenha e que machuca, que priva o emprego – para alguns -, que seduz (aos emergentes, que sempre surgem de maneira jocosa em seus filmes). As pessoas que aceitam o jogo incomodam tanto em sua obra (e em alguns muitos do cinema de seu estado, mas no dele com carga diversa de agir) como o Estado, como outras instituições oficiais (a cena da igreja, aqui, é forte, de impacto, engraçada um tanto ao non-sense que se pode encontrar em Jia Zhang Ke –prédios podem voar, do nada), como as corporações. Mas o mais incrível de tudo é que Marcelo, mesmo sob a grandiosidade de sinfonia, mesmo apontado para os dramas sociais e as inconsequências daquele que anseia à burguesia, consegue empregar humor (irônico, como disse acima, um tanto sacana) para amarrar todas suas ideias; afinal, se como na obra do diretor chinês edifícios podem decolar, com pedroso, o “agasalhamento”, a “proteção” da bandeira símbolo maior da instituição pode ser aproveitada para servir de lente de aumento para servir de exemplo.

Temos, resumindo e reforçando: um filme sinfonia de questões.

(Texto originalmente publicdo em Cinequanon.art)