BRASÍLIA 2015: “FOME” É CINEMA NA MELHOR DAS ACEPÇÕES.

Fome

por Cid Nader, de Brasília.

Direção: Cristiano Burlan
SP , 90 minutos. 

Talvez mais incrível do que chegar a um filme como esse novo longa de Cristiano Burlan, cheio de certezas sobre suas qualidades, sobre seus alcances, sobre as variações contidas do que poderia ser um somente corpo para desabrochar em diversas “polinizações” – e com tantas nuances a serem comentadas -, é constatar, novamente, e até em meio a tropeços no meio do caminho, o quanto ele avançou na carreira optada de realizador: mais do que servir como um que decide sobre “progresso” de alguém em algo, o que chama mais a atenção e permite observá-lo em avanço é perceber que sua noção sobre a arte, seu conhecimento, ganharam corpo e coragem, fazendo com que o cinema tímido e equivocado do início hoje em dia possa ser entendido como passos indecisos, sim, mas de quem tinha em minha mente um prosseguimento que o traria (junto com o conhecimento) à tona, por obras mais complexas e abrigadoras, e de que esse início de temor (ou tatear) talvez tenha sido justo para sustentar o que viria. Talvez exagerando, até porque ele teve um longa recente do qual não gostei – ao mesmo tempo em que compôs um dos mais corajosos e autodevastadores documentários de nossa cinematografia (Mataram Meu Irmão) -, mas cônscio de que há nele alguém, a figura, do que aguardou e construiu uma obra (que está em andamento, obviamente), sem receio de se revelar em suas indecisões, sem arrogar-se o conhecedor que com certeza é.

E Fome é muito o seu diretor nisso das variações, de uma não constância, mas de algo que avança, que se constrói por partes para que a seguinte se abasteça da anterior, servindo de sustentação para seguinte. É muito o Burlan que entende da arte por outros meandros, e traz esse conhecimento reflita na admiração por Jean-Claude Bernadet, que mesmo sendo quase um retrato de si mesmo aqui, está no filme também como outra figura qualquer (dentro do espectro possível onde de podem encontrar figuras diversas – não somente ele como um intelectual do cinema – que abdicaram de um status para se entregarem às ruas: os beatniks em algum grau pregaram e até fizeram isso), e o diretor que talvez entenda das ruas como poucos.

Quando os longos (nada longos à contemplação) minutos iniciais acompanham a figura do mendigo (do ser das ruas, na realidade, que não é mendigo em sua concepção, que se permite negar a comida oferecida como se fosse a porcos, por exemplo, e não a gente; que afronta os que estão nos carros com seus vidros fechados, protegidos – algo que pode soar como pueril discurso de revolta, mas que vale demais e ajustadamente dentro de uma estrutura dramática que abriga pessoa que pode afrontar, por não ser fruto da falta de oportunidade, e sim de opção; que pode se encantar e renutrir desejos que pareciam sepultados pela figura de um que canta, sobre o Minhocão, extenso e icônico viaduto da cidade – no mais terno instante do filme, de belo desfecho no plano que os contempla caminhando, por trás) pelo centro de São Paulo, arrastando um enferrujado carrinho de supermercado com seus pertences de morador de rua, com a amplidão visual dos quadros (a cidade e o céu nublado criando clima de opressão e abrigo único, em contraste) em PB raro servindo de carta de apresentação para reforçar que estamos diante de um filme (arte das imagens,a final de contas), e não da realidade, algo como abrigo das expectativa cresce rapidamente em potência para o que virá adiante, para o quanto tal início poderá se sustentar, e para determinar se não está ali somente como explicitação específica de um capricho no trato visual que talvez pudesse vir a ser boa parte dos anseios do trabalho.

E então o primeiro corte, para a garota que entrevista moradores de rua (parecem ser “reais”), numa virada que se por um lado alivia diante da expectativa de que se o que viria à frente se sustentaria a mais do que todo aquele planejamento, afinal de contas, estilístico, ao mesmo tempo que muito bom, por outro, rompe de maneira tão drástica, e por um ingresso reverso tão forte nas disparidades (e de tão menos impacto cinematográfico), a ponto de suscitar instantaneamente questões como, “mas é isso? Tudo aquilo para cairmos num filme de viés social documental?”. E enquanto tal momento nos situa diante de depoimentos que não são nada edulcoradores, mas causando certo temor do provir, uma virada, as ruas do protagonista principal de novo, e mais uma virada, já à noite quando ele se prepara para dormir sendo interpelado pela estudante (que por um extenso tempo o chateará e conquistará com suas questões, a ponto novamente de temermos), para uma outra virada quando consegue finalmente paz para dormir (nessa, Jean sonha com os temores de alguém que foge de algo, que se encontra no estado de penúria de tantos, mas como que sonho de quem optou por tal, remetendo a algo parecido ao visual de trechos de Orpheu, do Cocteau, de imagens opressiva e novamente brutas e belamente tomadas…

E estamos dentro da alma de um filme de cinema na melhor das acepções. Na função da construção, passamos a notar que há todo um jogo de construções, com preparações para o que virá, e com tais preparações indo à quase exaustão porque o passo seguinte se alimentará disso, surgindo como alívio e com elementos para mais um passo; um filme que é todo fechado – no melhor dos sentidos, pois arranjado para tal -, que se “satisfaz” por si, mas engenhoso no modo desse “fechamento”; que é forte e bem cuidado extremamente visualmente, quando na utilização de uma standcam (recurso que pode matar um trabalho, ainda mais quando trata de segmentos de pobreza) se permite rearranjando o quadro (por diversas vezes ocorre isso) para não desperdiçar tudo que foi captado em busca de uma nova tomada (ou no aproveitamento da melhor). Na função do mote: ao levar um ex crítico de cinema, um intelectual dele, professor, figura importante demais reconhecida pela negação, pela desconstrução, pelas cobranças, que até pode ser vista como o próprio Jean-Claude Bernadet (isso se resolve bem na engraçada, complexa e elucidadora sequência com o crítico Fancis Vogner dos Reis, onde um desautoriza o outro, onde há jogo de cobranças, desavenças e similaridades – toda essa questão do personagem ser ou não recriação dele se resolve nesse segmento); mas que extrapola facilmente isso, sendo mais mesmo uma dessas figuras que se permitem escapar, se permitem ser da rua como reinício por culpas, por desejo do novo que jamais será encontrado no que pode tangenciar seu mundo antigo (o contraste no seu ideal de estar ali está bem definido na anteposição da “vergonha” daqueles reais que depõem à estudante, por estarem em tal situação, ficando claro que sua figura de “mendigo” jamais poderia ser vista como um signo de cinema em contemplação acomodada, ou que doura ma realidade ao se valer de alguém); também na “redenção” da aluna, na conversa com o professor após a apresentação de seu trabalho (redenção tão possante quanto inocente, mas que cabe bem demais nesse esquema imaginado de rompimentos e renascimentos, de quase chateações para elevações, que são de todo o tempo no trabalho); na criação de um personagem que peita a sociedade e é desagradável em sua interiro importância, o que lhe proporciona enxergar e acusar…

E de cenas lindas, no âmago: como a já citada do cantor/desejo sobre o viaduto; como outra citada, do sonho; a inicial (os caminhos pela cidade são todos belos e reveladores disso do caminhar, estar, reconhecer, que é tão dos de rua); o belíssimo momento em que é convidado para comer no apartamento da protagonista, quando o portão do prédio se abre e se fecha, mas sem ser instante definidor; o banho e o pós-banho, na rua novamente; a brincadeira sobre a grade do metrô… Particularmente, vejo no filme cinema como raras vezes temos visto: porque inventa, transita um tantinho pelo híbrido, tem atuações, e o drama como condutor.

Texto publicado sob licença de www.cinequanon.art.br