CABE TUDO NA MOSTRA DE SP. ATÉ INSTITUCIONAL DE FUNERÁRIA.

Por Celso Sabadin.

Um dos maiores atrativos da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo sempre foi a sua diversidade. Em tempos pré-internet, o grande diferencial do evento sempre foi exibir filmes que jamais veríamos em condições normais de mercado, trunfo que há 45 anos faz a alegria do cinéfilo que mora ou viaja até a capital paulista especialmente para esta festa.

Acompanho a Mostra – anos mais, anos menos – desde a sua primeira edição, quando ela ainda era chamada, popular e informalmente, de “Mostra do MASP”, ou “Mostra da Folha”, e já vi através dela muitas obras maravilhosas e umas tantas outras insuportáveis.

Agora… filme institucional de agência funerária é a primeira vez que eu vejo no evento. Sob o título “Lidando com a Morte”, um dos trocentos filmes a serem exibidos nesta 45ª. Mostra documenta a batalha de Anita, uma empresária que pesquisa o mercado dos funerais multiculturais para tentar abrir um empreendimento em Amsterdam. A ideia é construir um grande centro de eventos na cidade para realizar cerimônias fúnebres das mais diversas culturas – árabes, hindus, muçulmanas, africanas, etc. – representativas dos grupos étnico-sociais que ali habitam. E cobrar uma boa grana por isso, claro.

Ou seja, um projeto que só poderia mesmo ter saído da mentalidade colonialista de um país como a Holanda: apropriar-se culturalmente das tradições ligadas à morte de cada núcleo populacional, tirá-las de sua geografia natural, e transportá-las para uma espécie de shopping center macabro administrado pelos brancos europeus. Quando questionada por um ganês se eles poderiam levar a própria bebida ao funeral ou seriam obrigados a compra-la no local, Anita disse que isto ainda estava em estudos.

Em suas pesquisas, nota-se como a empreendedora holandesa nutre um certo desprezo pelas culturas fora de sua restrita bolha – ou rindo muito durante o ensaio de um enterro, ou ridicularizando lideranças religiosas –  alimentando a postura de só se submeter a tudo este processo para conquistar futuros clientes.

Contrapor a cena de um funeral de brancos regado a um vinho especialmente trazido da Nova Zelândia – como o filme faz questão de registrar – a um momento de um funeral africano que registra em close uma senhora negra mastigando com dificuldade um macarrão que lhe escorre pelos lábios faz parte da construção narrativa do documentário.

Capitalizar sobre os rituais fúnebres dos povos outrora oprimidos pelos brancos europeus surge como o auge de um novo e desprezível processo colonialista que se intensifica nestes novos tempos de capitalismo exasperado.

E pior: o filme em si parece validar tal comportamento, acabando por se transformar num amplo material promocional da mega funerária que, sim, será construída.

O título do longa em inglês “Dealing with Death” parece mais apropriado, posto que o verbo pode também ser traduzido como “Negociando”.

Com direção e roteiro de Paul Sin Nam Rigter, “Lidando com a Morte” está na programação d 45ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em cartaz de 21 de outubro a 3 de novembro. Saiba mais em https://45.mostra.org