“CABIRIA”, A MÃE DAS SUPERPRODUÇÕES HISTÓRICAS.

Por Celso Sabadin.

De setembro de 1911 a outubro de 1912, a Itália e o Império Otomano se digladiaram num sangrento conflito que ficou conhecido como Guerra Turco-Italiana ou Guerra da Líbia. Vencedores, os italianos foram acometidos de um exacerbado orgulho nacionalista que deflagrou no país uma onda saudosista dos grandes feitos do antigo Império Romano. Como não poderia deixar de ser, o cinema – então uma jovem invenção que simbolizava a modernidade – embarcou neste “revival” da época dos imperadores, produzindo vários títulos grandiloquentes, nacionalistas e patrióticos, meio que prenunciando o fascismo que se avizinhava.

Neste contexto, a poderosa Itala Filmes, que já havia produzido, entre vários outros, curtas como “Júlio César” e “A Queda de Troia”, parte para seu mais ambicioso projeto: “Cabiria”.  A inspiração veio dos escritos históricos milenares de Tito Lívio que, misturados aos romances populares de Emilio Salgari, originaram um roteiro assinado pelo próprio diretor Giovanni Pastrone, na época já autor de uma dúzia de curtas (na época praticamente só havia curtas). As cartelas de entretítulos foram encomendadas ao conceituado poeta e dramaturgo Gabriele D’Annunzio.

Sempre é bom desconfiar de informações fornecidas por profissionais do cinema que, como sabemos, geralmente são grandes ficcionistas e adoram um exagero, principalmente se isso render notícias na imprensa. De qualquer maneira, dados difíceis de serem checados após mais de um século informam que “Cabiria” foi produzido por mais de dois anos em diversos locais da Itália, Espanha, Suíça e Egito, que teria empregado mais de 6 mil figurantes e custado algo em torno de US$ 250 mil dólares, quantia exorbitante para a época.

Independente da precisão ou não das informações, o longa é realmente grandioso. A história narra a incrível saga da garotinha Cabiria (vivida por Carolina Catena na infância e Lidia Quaranta na fase adulta), que sobrevive a uma erupção vulcânica, é tida como morta, raptada por piratas fenícios, vendida como escrava, salva por um romano bondoso e seu escravo, feita empregada de uma rainha… enfim… uma trajetória pra Ben-Hur nenhum botar defeito. Tudo tendo as Guerras Púnicas (Roma contra Cartago, século 3 a.C.) como pano de fundo, com direito a Aníbal transpondo os Alpes com seus elefantes, e a frota de navios romanos sendo incendiada em Siracusa.

É em “Cabíria” também que surge o gigante escravo Maciste (interpretado pelo estivador genovês Bartolomeo Pagano, que na tela aparentava ser bem maior que seus 1,83m), personagem que se eterniza em dezenas de produções do cinema italiano.

Infelizmente, o tempo e algum descaso se incumbiram de mutilar a obra que, segundo o site Imdb, tem atualmente versões de 123, 125, 148, 162 e 181 minutos, dependendo da restauração. Fala-se também de uma versão “integral” de quase 200 minutos. Assisti à versão da Kino, com 123 minutos, onde algumas  algo do roteiro se perde ou se trunca, mas mesmo assim é possível verificar a grandeza da empreitada.

Cinematograficamente, “Cabiria” é um primor. A cena inicial, da erupção do Etna, por si só já é suficiente para prender o espectador em sua poltrona, apresentando efeitos visuais e verossimilhança excelentes para a época. Apesar dos entretítulos um tanto verborrágicos escritos por D´Annunzio, a trama tem ótimos ritmo e fluidez. Sem contar que se trata de um dos primeiros longas metragens da História do Cinema, numa era em que a predominância dos curtas e médias era praticamente total.

Contudo, o que mais chama a atenção é a elegância dos movimentos de câmera, que com lentos e sedutores travellings “convidam” o espectador a entrar na história, ao mesmo tempo em que revelam uma profundidade de campo praticamente inédita no período. Nunca é demais lembrar que as câmeras tinham de ser movimentadas sem que seu operador se descuidasse nem por um segundo da manivela que movimentava a película, o que dificultava todo e qualquer movimento.

Registros da época informam que, em abril de 1914, “Cabiria” estreou na Itália em evento igualmente megalômano, com sua trilha sonora sendo executada ao vivo (mesmo porque não havia ainda a gravação do som na película) por uma orquestra de 80 elementos e um coral de 70 vozes. Em cerca de 4 meses de exibição, “Cabiria” teria sido vista por meio milhão de pessoas.

Sempre patrióticos e xenófobos, os norte-americanos não gostam do assunto, mas muito se comenta que “Cabiria” teria sido a grande inspiração para D.W. Griffith realizar seu clássico “Intolerância”, que estreou em Nova York em setembro de 1916.

Verdade ou não, é inegável que a superprodução italiana influenciou fortemente toda a História do Cinema, marcando as bases de um gênero que se estendeu por décadas.