Cabra-Cega

Mais um filme sobre a ditadura militar brasileira? Não. Cabra-Cega, de Toni Venturi, é muito mais que simplesmente “mais um filme”. Ele começa mostrando a fuga desesperada de Tiago (Leonardo Medeiros, ótimo), que vê seu “aparelho” (jargão da época para os esconderijos dos militantes anti-ditadura) ser estourado pelas forças do governo totalitário brasileiro dos anos 70. Com uma bala no ombro, Tiago se refugia na casa do arquiteto Pedro (Michel Bercovitch). O primeiro encontro entre estes dois personagens já inaugura o clima de tensão que permeará todo o filme: ambos se estranham, mas parecem fazer parte de um código comum, se repelem ao mesmo tempo em que sabem que terão de se suportar.
Logo entram em cena mais dois personagens: Rosa (Débora Duboc), ativista de bom coração, domina seus instrumentos de enfermagem mas não sabe o que é pegar em armas. E Mateus (Jonas Bloch), estrategista, líder, mais velho, pondera com vagar e cuidado os rumos que está tomando o movimento guerrilheiro. São quatro faces de uma mesma moeda. Na ponta mais radical, Tiago, armado de corpo e alma. Seu contraponto light é Pedro, que quer ajudar, mas sem se comprometer. Rosa e Mateus equilibram o jogo, cada um à sua maneira. São quatro níveis de envolvimento, quatro formas diferentes de lutar contra um mesmo inimigo que, no filme, mal parece.
A pesquisa feita para o filme é um capítulo a parte: mais de 40 nomes de militantes da luta armada foram contatados, sendo que deste total 11 foram selecionados para longas entrevistas em vídeo. As 32 horas de entrevistas gravadas não renderam apenas a matéria-prima para o roteiro de Cabra Cega, como também resultaram na produção do documentário No Olho do Furacão, exibido na TV.
Sem cair em clichês fáceis, Cabra-Cega radiografa, de dentro para fora, as próprias contradições internas da luta armada daquela época. A direção de Toni Venturi (de Latitude Zero) é das mais eficientes. O filme se abre aos poucos, se auto-explica lentamente, se permite, devagar, aos planos mais abertos. Ou seja, ele se comporta, esteticamente, da mesma forma que Tiago realiza seu rito de passagem de guerrilheiro radical, que não pode sequer ser visto através da janela, a homem completo que se permite amar e comer uma macarronada a céu aberto.
E como se tudo isso não bastasse, traz uma trilha sonora emocionante, com releituras de sucessos marcantes daquele período.
Cabra-Cega é documento para as novas gerações que mal têm idéia do terror dos nossos anos de chumbo. Um filme pra ser visto, revisto, debatido e estudado. Não por acaso, ganhou seis prêmios no Festival de Brasília.