“CARA OU COROA” PROVOCA REFLEXÃO MADURA DOS TEMPOS DE DITADURA.

Já ouvi gente reclamando que o Brasil já fez filmes sobre a ditadura militar em número “suficiente”. Discordo frontalmente. Ainda há muito a ser dito sobre aquela época, ainda há muito a ser levantado, vários ângulos ainda inexplorados e – pior – muitos jovens que até hoje mal sabem da existência daquele período.
Só estes motivos já justificariam uma acolhida das mais positivas para “Cara ou Coroa”, o novo longa de Ugo Giorgetti (de “Boleiros”). Mas há mais: além de tratar de um tema sempre oportuno, o filme também é repleto de qualidades dramatúrgicas, narrativas e cinematográficas.

A ação se passa em São Paulo (palco que Giorgetti domina como poucos) durante o inverno de 1971. Ainda é a São Paulo da garoa, do frio e das malhas de lã, que não existe mais. João Pedro (Emílio de Mello) é um diretor de teatro estressado com a montagem de uma peça escrita pelo seu irmão Getúlio (Geraldo Rodrigues), e com o relacionamento conturbado com sua esposa. Sua situação piora ainda mais quando ele é praticamente forçado por setores da esquerda (que financiam sua peça) a esconder dois refugiados políticos.

Mais que o clima de tensão (ótimo) que costuma acompanhar filmes sobre esta temática, “Cara ou Coroa” traz um roteiro (também assinado por Giorgetti) dos mais equilibrados e lúcidos. Sem nenhum tipo de panfletarismo, o filme faz um retrato fiel da época, foge do maniqueísmo e desenha com precisão os mais diferentes tipos humanos marcantes daquele período. Corajoso, o cineasta desenha no mínimo duas personagens que anos atrás seriam execrados pelas chamadas “patrulhas ideológicas”: um general humanizado e um comunista totalitário. Hoje, o necessário e saudável distanciamento histórico já permite este tipo de releitura.

A construção dos personagens, diga-se, é provavelmente o ponto alto do filme. Entre medos, sussurros e desconfianças, vemos uma juventude ao mesmo tempo atemorizada e consciente da tomada de uma posição. Seja ela qual for. Já Otávio Augusto, excelente como sempre, faz um delicioso contraponto cômico ao incorporar a classe média conservadora, tão presente em nosso país, que não diferencia macumbeiro de budista. O pequeno (porém fundamental) personagem da empregada do general, em seu silêncio omisso, também é uma fortíssima referência sócio-cultural brasileira.

Entre todos eles, ninguém é herói, ninguém é vilão. Todos são vítimas de uma violência que o filme sabiamente opta por não explicitar, mas que se sente, internamente, em cada olhar, em cada respiração tensa.
Em determinado momento, uma jornalista recém libertada da prisão alerta para a necessidade de diferenciarmos aqueles que foram torturados daqueles que tomaram apenas “um tapa na bunda”. E preconiza que, no futuro, oprimidos e opressores estarão juntos, dançando no mesmo baile. Uma constatação que soa impossível aos ouvidos de 1971, mas se constitui no triste, tristíssimo cerne da nossa política atual que colocou todas as farinhas no mesmo saco da ambição pelo poder.

Provocador, “Cara ou Coroa” provoca densas reflexões, e propõe uma revisão dos Anos de Chumbo com rara maturidade.