“CASTANHA”, UMA PEQUENA JÓIA QUE DISPENSA RÓTULOS.

Um ator interpretando ele mesmo, e contando no filme a sua própria história resulta numa ficção ou num documentário? E se este ator, além de interpretar a si próprio, também participar do roteiro? E mais: se a mulher escolhida para fazer o papel da mãe do ator que interpreta a si mesmo for ninguém menos que a própria mãe do ator, na vida real, que faz o seu próprio papel, isso significa que estaremos vendo uma ficção ou um documentário? Todas estas perguntas se encaminham para a mesma resposta: definitivamente, separar ficção de documentário está cada vez mais inútil.

A importância de se saber o quanto há de realidade e o quanto há de encenação em “Castanha”, do estreante em longas Davi Pretto, é minúscula diante da belíssima sensibilidade do filme, que independe de rótulos.

João Carlos Castanha é um ator que vive nos subúrbios de Porto Alegre. Mora com sua mãe, Celina, e tira seu sustento apresentando shows num clube gay, além de atuar em teatro alternativo. Tudo isso é verdade na vida real, da mesma forma como também é o argumento básico do filme. Castanha e sua mãe protagonizam a si próprios. O cotidiano dos protagonistas,  denso e duro, forma a linha narrativa de “Castanha”. Lenta e silenciosamente, vamos conhecendo o universo desta dupla filho/mãe que aos poucos vai introduzindo outros coadjuvantes igualmente marginalizados. Um ex-marido asilado, um sobrinho viciado, um namorado, colegas de trabalho. Entre shows de transformistas, visitas ao posto de saúde e passeios noturnos, forma-se um painel hiper realista deste  pungente mundo, digamos, “castanheano”.

Deste muito pouco, Davi Pretto extrai quase tudo. Os enquadramentos são preciosos, a luz é de uma poética entristecida que faz parecer que até as cenas diurnas são noturnas, como que sublinhando o anoitecer da alma. E as interpretações, de tão naturalistas, talvez nem devam ser chamadas com este nome: interpretações. Por mais que o papel de Castanha, vivido por Castanha, seja milimetricamente talhado para se constituir por si só num papador de prêmios de Melhor Ator em qualquer festival do mundo, quem escancara mesmo os portões da emoção é sua mãe, Celina. Que, por sinal, também é Castanha. Que mulher é essa? Uma avó incapaz de condenar o próprio neto, por mais criminoso que ele possa ser,  por priorizar sem censura e com ternura seus laços de sangue. E que ainda telefona para prevenir os demais dos prováveis estragos que este seu cosanguíneo certamente fará. Uma mulher que personifica carinhosamente o famoso “minha mãe não dorme enquanto eu não chegar” da velha canção. Um coração em forma de mãe, avó e ex-esposa. E uma interpretação, com aspas ou não, nunca menos que primorosa.

Exibido em vários festivais pelo Brasil e pelo mundo (inclusive Berlim), onde vem colecionando prêmios, “Castanha” é uma preciosidade.