“CINEMA NOVO”: A POLÊMICA CONTINUA.  

Praticamente meio século após o seu término, o movimento Cinema Novo continua provocando polêmica. Prova disso é o documentário batizado exatamente de “Cinema Novo”, que estreia agora em circuito comercial.

Celso Sabadin gostou. Alfredo Sternheim lamentou. Leia:  

 

BELA COLAGEM SE REVIGORA EM NOVOS SIGNIFICADOS

Por Celso Sabadin

Segundo o crítico e historiador francês Georges Sadoul, o cinema brasileiro era o melhor do mundo, nos anos 60. Naquela época, os brasileiros não sabiam disso. E continuam não sabendo. Na verdade, a corrente estética cinematográfica brasileira que naquele período ficou conhecida como Cinema Novo sempre primou pelos conceitos de uma ideia na cabeça, uma câmera na mão, vários prêmios internacionais, e ninguém na sala de cinema para assistir. Eram filmes polêmicos realizados por gente polêmica que ganhavam estudos, matérias na imprensa, discussões estéticas e políticas as mais diversas, mas que passavam à deriva do grande público, sempre mais sintonizados com  filmes cômicos ou eróticos. Ou, se possível, ambos.

Assim, é mais que bem-vindo o lançamento de “Cinema Novo”, documentário que aborda o famoso movimento de maneira mais poética que didática, mais estética que clássica. O que não poderia ser diferente, posto que a direção é de Eryk Rocha, filho de Glauber, o nome mais iconoclasta e inquieto do cinema brasileiro daquele período.  Glauber se reviraria no túmulo se seu filho tivesse feito um documentário em estilo tradicional.

“Cinema Novo” propõe uma colagem fragmentada de títulos cinemanovistas, muitos deles, podemos dizer, integrantes de um “cinema não visto” pela grande maioria do público. Principalmente pelas plateias jovens.  Tais colagens propõem novos significados aos antigos filmes, rejuvenescendo-os e colocando-os sob as luzes de novos tempos que, talvez, não sejam tão novos assim neste Brasil que vem caminhando para trás e que sistematicamente sucumbe a novos formatos de ditadura. Assim como sucumbiu o Cinema Novo.

O documentário não se pretende pedagógico muito menos institucional, abre mão de cronologias históricas e se permite licenças poéticas de trabalhar com trechos de filmes não necessariamente cinemanovistas, mas que contextualizam as influências do período, como uma pitada de Eisenstein, por exemplo.

Sim, há vários depoimentos, mas todos eles captados no calor do momento, na época da efervescência do movimento, o que confere ao documentário um valor verdadeiramente histórico, relevando qualquer revisionismo a posteriori o que seria, no mínimo, desnecessário.

Ao final, numa bela homenagem coletiva, “assinam” o filme créditos cinematográficos dos mais diversos cineastas do período, nem todos identificados com o Cinema Novo, mas todos, de alguma forma, inseridos naqueles anos 50, 60 e até 70 que se constituíram num dos períodos mais intensos, polêmicos e criativos do nosso país e do nosso audiovisual.

Vencedor do prêmio Olho de Ouro de Melhor Documentário do Festival de Cannes, “Cinema Novo” estreou nesta quinta, 3 de novembro.

 

UMA OPORTUNIDADE PERDIDA

Por Alfredo Sternheim.

É inegável a importância do movimento conhecido como Cinema Novo na História do nosso cinema. Com o passar dos anos, quase sempre foi reverenciado pela crítica. Ao contrário do que ocorreu no passado, em épocas mais próximas ao seu surgimento. Em especial no começo dos anos de 1960, quando ocorreram manifestações intensas pró e a favor em textos e encontros.  Nada mais justo que aquele grupo que, publicamente, repudiava ao que já existia em nossa Sétima Arte (a Atlântida, a Vera Cruz e outras condutas mais industriais), desse ensejo a um filme a respeito.

Caso de “Cinema Novo”,  que chega às salas de exibição. Designado ora como documentário ou como uma homenagem, o resultado deixa a desejar. De uma maneira ou de outra.

O tom de tributo afetivo fica evidente na brilhante montagem inicial com cenas em que personagens do cinema novo aparecem correndo em direção ao mar ou em ruas de uma grande cidade. Há uma costura dessas imagens que traz certa semelhança com aquelas  que, há décadas, costumamos ver em cerimônias como a do Oscar, do Emmy ou do American Film Institut, quando abrem espaço para homenagens a determinadas personalidades. Nada errado. Mas, no geral, esse recurso é usado a exaustão em “Cinema Novo”.  Uma overdose. A solução passa do ponto e gera cansaço visual.

Nesse aspecto, tanto aceitando a proposta de uma evocação afetiva ou a de um documentário,  a desinformação predomina. Ou o desprezo à informação.  O espectador que não estiver familiarizado com as realizações de Glauber, Diegues e outros cineastas surgidos naquele movimento, não vai saber de que filme são as cenas expostas. E muito menos, quem são os seus protagonistas. Assim, existe a oportunidade de ver lampejos de atuações notáveis de Glauce Rocha, Jardel Filho, Anecy Rocha entre outros, mas a ignorância a respeito vai prosseguir. A preguiça de colocar uma legenda é fatal.

Essa grave ausência de identificação acirra a confusão nos créditos finais. Em seguida a “Direção de …” surgem nomes de cineastas que não tiveram nenhuma presença no Cinema Novo. Estão citados porque foram usadas cenas de alguns de seus filmes.  Caso do grande Alberto Cavalcanti (cuja obra é mais expressiva no exterior do que em nosso país), de Walter Hugo Khouri, Humberto Mauro, Luiz Sérgio Person,  Roberto Farias e outros. Nessa salada, chega a ser leviano ou desonesto inserir cenas de Corpo Ardente, do Khouri; o cineasta paulistano, de quem fui assistente, na época chegou a ser execrado pelos teóricos e marqueteiros do movimento que, apregoando um mergulho radical na realidade brasileira, o chamavam de alienado em função de sua obra intimista e voltada para conflitos puramente existenciais. Essa imposição que se fazia via mídia ou palestra gerou um bate boca quando ele chamou de fascista um crítico em debate no teatro de Arena de São Paulo. O teórico havia afirmado que um cineasta como ele, longe desses dogmas, teria a que se retirar da profissão.  Khouri respondeu que, caso fizesse um filme só em seu apartamento e distante de qualquer favela, seria algo tão ou mais brasileiro do que outros longas. Esse clima agressivo atingiu

Anselmo Duarte logo após o seu filme “O Pagador de Promessas” ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Um drama social produzido pelo Cinema da Boca e  estruturado sobre as normas mais tradicionais da linguagem cinematográfica. Algo que o movimento rejeitava sob o pretexto de serem fórmulas importadas.

“Cinema Novo” passou léguas de distância do ambiente beligerante que existia . Ignorou qualquer manifestação ou opinião antagônicas. Optou por fazer uma celebração  com os seus próprios protagonistas. Daí a enxurrada de depoimentos de Glauber, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto, entre outros. Mas, mesmo nesse aspecto, há lacunas. Nenhuma referência a Luis Paulino dos Santos e Miguel Borges, por exemplo, que foram significativos a favor do movimento. Nem como se deu a adesão dos cinemanovistas aos cânones empresariais impostos pelo surgimento da Embrafilme em 1969, em ato surpreendente da Junta Militar que governava o Brasil. E muito menos, nenhuma menção as dificuldades econômicas de se fazer cinema no Brasil daquele tempo diante do alto custo do negativo e do positivo (não existia o digital),  da predatória concorrência do produto importado e da inflação.

O Cinema Novo não alcançou o grande público, não obteve o almejado diálogo com o povo. Mas assim como, anos antes de se agregarem sob essa denominação, já existiam os diretores independentes e corajosos como Nelson Pereira dos Santos enfocando a realidade brasileira (e encampado pelo movimento), a partir daí passaram a atuar  outros cineastas criativos. Como Walter Lima Jr. e Leon Hirszman. .Ou seja, apesar do clima predatório que criou (algo na linha do embate político  do nosso momento atual), o Cinema Novo teve um legado positivo. Merecia um filme mais esclarecedor do que este, feito por Eryk Rocha.  Uma oportunidade perdida.