CINEMATECA EXIBE FILME INÉDITO FEITO EM 1918.

Por Celso Sabadin.

Parece história de cinema: no início do século passado, o cineasta português radicado no Brasil, Silvino Santos, produziu e dirigiu um longa-metragem documental sobre o Rio Amazonas. Após minuciosa e exaustiva filmagem, enviou o material bruto para ser revelado em um laboratório em Londres. E lá, segundo consta, foi extraviado.
O filme – batizado de “Amazonas, o Maior Rio do Mundo” – teoricamente nunca foi revelado, consequentemente nem copiado e muito menos exibido. Estava irremediavelmente perdido. Começaram a circular rumores que os europeus, fascinados com as imagens que viram, teriam roubado o trabalho de Silvino, e o revendido, em fragmentos, pelo velho continente.
Afinal, há 105 anos, quando a televisão nem sonhava existir, imagens da misteriosa Amazônia seriam de valor inestimável. Mas nada foi comprovado.

Cansei de contar e recontar esta história aos meus alunos. Mas agora, em 2023, tudo mudou: para a surpresa de toda a comunidade cinematográfica, “Amazonas, o Maior Rio do Mundo”, foi encontrado. Ele estava – não me perguntem porquê – no Národní Filmový Archiv (o Arquivo Nacional de Cinema da República Tcheca), editado em uma cópia de cerca de 60 minutos, legendada em tcheco. Para o mundo do cinema, é algo como encontrar a tumba de Tutankamon, para os arqueólogos.

Acabo de sair da Cinemateca Brasileira (escrevo este texto em 16 de novembro), onde o filme foi exibido para um grupo de jornalistas. A sensação de estar – pelo menos um pouquinho – participando desta história é maravilhosa.
Formalmente, como não poderia deixar de ser, trata-se de um documentário dos mais clássicos e convencionais. Mesmo porque – é sempre bom ressaltar – ele foi realizado quatro anos antes do histórico e seminal “Nanook, o Esquimó”, numa época em que sequer havia sido criado o termo “documentário”. Tal estética cinematográfica era conhecida como “travel logs”, ou “diários de viagem”. A palavra documentário só seria inventada nos anos 1930.

As quantidades e proporções me chamaram muito a atenção em “Amazonas, o Maior Rio do Mundo”. Quando aparecem, por exemplo, jacarés, não são dois ou três, como nos acostumamos a ver, mas 20 ou 30. Na cena – extremamente dolorida – da pesca do peixe boi, há cerca de duas dezenas deles expostos na praia, mortos, para as câmeras de Silvino. Mandiocas? Quase gigantes. Produção de algodão? Há um trem especial para transportá-la ao porto mais próximo (eu nem sabia que se produziu algodão na Amazônia). Borracha, então, sem se fala!

A abundância e o superlativo dão o tom do longa, juntamente, é claro, com a terrível sensação de saber que toda esta riqueza foi vilipendiada durante décadas. E continua sendo.

Também chama a atenção a quantidade de indígenas vestidos com calças, camisas (às vezes, até cintos), saias e vestidos longos. Não são poucos os que abotoam seus colarinhos até o alto do pescoço. Sim, há cenas com a natural nudez dos povos originários, mas são minoria. Não sei dizer se há realmente uma verdade documental nestas indumentárias, ou se teria sido algum cuidado pudico dos produtores do longa.

De qualquer maneira, “Amazonas, o Maior Rio do Mundo” é uma rara preciosidade que deve ser conferida não apenas por cinéfilos, mas por qualquer pessoa que se interesse por este gigantesco mistério chamado Brasil.
Anote: haverá uma exibição especial na Cinemateca Brasileira na próxima quarta-feira, dia 22, às 20h, seguida de debate com Sávio Luís Stoco, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista na obra de Silvino Santos; Eduardo Morettin, professor livre-docente do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP e Klára Trsková, curadora de cinema Národní Filmový Archiv (Arquivo Nacional de Cinema da República Tcheca). A mediação é da jornalista da Folha de S. Paulo, Giuliana de Toledo.  Esta sessão terá trilha original e inédita composta pelo músico Luiz Henrique Xavier, compositor, flautista e professor de composição, teoria e análise do departamento de música da Unicamp.

O filme será depois exibido em João Pessoa (PB), no dia 1/12, na programação do 18º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro. No dia 7/12, será a vez do Rio de Janeiro (RJ), em sessão na Cinemateca do MAM Rio, seguida de debate. E no dia 22/12, haverá exibição em Fortaleza (CE), em parceria com o Cineteatro São Luiz e o Cine Ceará. Já no dia 29/12, há ainda uma sessão no Teatro Amazonas, em Manaus (AM), em parceria com o Cine Set e o Governo do Estado do Amazonas. Em 2024, o filme será exibido no exterior, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, em Lisboa (Portugal).

Fica a pergunta: todos os livros de História do Cinema, que creditam “Nanook, o Esquimó” (1922), como o primeiro documentário de longa-metragem, terão agora de ser mudados, diante da descoberta?