“CINZAS QUE QUEIMAM”, DOIS FILMES EM UM.

Por Celso Sabadin.

É inevitável uma sensação de estranhamento ao final de “Cinzas que Queimam”. Aliás, duas. A primeira é pensar quais seriam estas tais cinzas do título em português,  que sequer aparecem no filme, quanto mais queimam… Mas isso é detalhe. O estranhamento maior vem do roteiro, escrito a partir do livro “Mad With Much Heart” de Gerald Butler, sobre Jim (Robert Ryan), um policial estressado que após cometer vários atos de violência injustificada e desproporcional é enviado pelo seu superior para investigar um caso no interior.

É como se fossem dois filmes com pouca, quase nenhuma relação entre ambos. Há uma primeira parte, totalmente noturna, mostrando o cotidiano de Jim, seus colegas de polícia, seu destempero, sua frustração por ter sido um esportista de sucesso e não ter seguido carreira, e principalmente sua solidão. Mesmo este prelúdio, que não é pequeno, é fragmentado, intercalando chamados policiais não resolvidos, personagens que entram e saem da trama sem a necessidade imediata de uma função dramatúrgica, conflitos entre os próprios colegas. Quando a ação do filme é transposta para o interior, é como se começasse um novo filme, uma espécie de novo capítulo de um suposto seriado interpretado pelo mesmo protagonista. O noturno, o noir que permeia toda a primeira parte agora se desenrola dentro da personagem Mary (Ida Lupino). Muda o cenário, muda o plot, novos tipos tomam o espaço que não será retomado pelo que foi visto na primeira parte.

Se, em primeira instância, como foi dito, tal estrutura causa estranhamento, numa segunda análise, percebe-se que “Cinzas que Queimam” foi produzido em 1951, ou seja, num momento muito especial do cinema norte-americano no qual os grandes estúdios já iniciavam seu ocaso e a televisão ganhava cada vez mais força e espaço de mercado. Era o inicio de uma nova etapa onde se buscavam inovações e se questionavam as fórmulas prontas, etapa esta que ganharia força total a partir do final dos 60, com o surgimento da chamada Nova Hollywood. É neste panorama de 1951 que Nicholas Ray, na época com menos de 40 anos, sendo apenas três deles na carreira de diretor, realiza um inventivo noir não apenas em sua estrutura, como também se permite realizar experimentações com câmera na mão, recurso já bastante utilizado na Europa desde o pós-guerra, mas ainda inovador nos EUA. Para o espectador de hoje, “Cinzas que Queimam” traz ainda aquele delicioso frescor de se assistir a um filme de uma época ainda não contaminada com as formulazinhas esquemáticas estilo Syd Field que infestariam a atividade anos mais tarde.

A atriz Ida Lupino, que só aparece na segunda parte, dirigiu algumas cenas do filme quando Ray teve de se ausentar, adoentado, mas seu nome não foi creditado. “On Dangerous Ground” (este é o título original, bem melhor que as tais cinzas que queimam) faz parte da caixa de DVDs, Film Noir 7, lançamento da Versátil.