COM CARLOS REICHEMBACH NO ELENCO, “AVANTI POPOLO” ENTRA EM CARTAZ.

Um ponto em comum faz a liga entre as partes que por vezes parecem não desembocarão em algum consenso mais unitário – como se pontos de fusão, conclusão e unitários fossem ordem a ser cumprida obrigatoriamente na confecção do cinema: realmente não são mesmo – nesse primeiro longa-metragem, do grande e singular curta-metragista que é o Michael Wahrmann: Avanto Popolo. Tal ponto se dá – e está – na sala de estar do senhor Gatti (trazendo Carlão Reichenbach para a função de ator, na talvez sua última participação com o cinema): sala filmada amplamente, sempre a partir de um único, mesmo e intocado ângulo, que nutre a tela com visual opressivo e triste, tanto quanto belo, com tonalidades que referem a pinturas monocromáticas – ambiente de rara criação, especialmente pensado para funcionar imageticamente, com sutis nuances obtidas nos móveis, num quadro, ou tapete e paredes -, e que ganhará atenção detalhada das entranhas nas paredes, nos desenhos (no caso do quadro), da fundição entre tal monocromatismo para um desfecho de teor sofridamente humano, quando o pai Gatti se desarma e diz enxergar somente em cinza (momento de impacto metafórico); sala que abrange fisicamente as situações e questionamentos, as esperas, que se é notada escura, até um momento em que a janela é rompida a contragosto ou quando o projetor super-8 incide sutil luz artificial; espaço mono, que tenta fechar-se diante das cobranças propostas pelo filho errante que volta.

Outro dia comentava em outro texto sobre filmes híbridos como um “novo e bem-vindo modismo” que assoma o cinema: e seria o híbrido algo que é mais do que a ficcionalização dos documentários, levando o obtido para setores em que não se nota aonde se ligam as diferenças entre o real e o não real, criando confluências narrativas mais fluidas, e com certeza mais interessantes – e na “obrigatoriedade” de ter de situar Avanti Popolo em algum setor onde a obrigatoriedade se faça algo impreterível, que seja sob tal denominação. O filme tem seu quinhão aparentemente todo documental na figura do professor André Gatti (outro não ator, como o Carlão, ou como o Júlio Martí – normalmente diretor -, que aparece diafanamente próximo do final), que busca nas imagens em Super-8 (algumas tomadas nos momentos da infância, outras pelo irmão que teria ido à busca da utopia soviética – fato bastante comum no início dos 70) e nos discos antigos as sensações reais que perfarão trechos do trabalho; nos questionamentos feitos para si mesmo, uma espécie de análise realista (mesmo que inconformada e plena de autoironia) dos fatos: aliás, fatos que podem abarcar a ida do irmão para a Rússia em tempos de URSS, ou reclamar por outras ordens de inserção na “trama” a não punição aos “nossos” ditadores de 1964, por exemplo.

E vale lembrar que esse surgimento de André Gatti no filme se dá após uma sequência inicial genial, que aproveita o entardecer na cidade para uma especial e bela composição de luz, a parir de um início onde se ouve música quase folclórica do nosso nordeste, para depois notar-se estar partindo de um rádio, onde um narrador com sotaque espanhol/latino-americano (o próprio diretor, outro não ator, mas ai representando um papel, imagino ficcional) emenda falas de união e paridade no modo de ser desse nosso subcontinente: é todo um momento inicial de planejamento raro e constatação em tela de algo precioso, que creio ser um tanto desonesto revelar em texto com mais detalhes. Dá para afirmar, sem revelar nuances, que essa sequência desemboca na figura de André, antecipando o letreiro com o nome do filme.
É estranho – e lindo – como o filme por muitos instantes se insinua como peça de outros tempos: isso pode se dar na real direção que toma quando questiona (um tanto com saudosismo, outro tanto com questionamentos a respeito da institucionalização empregada pelo URSS ao movimento – inclusive no nome do filme mesmo, que são as primeiras palavras bradadas/cantadas num dos mais famosos hinos dos movimentos trabalhistas italianos, em época de socialismo e comunismo se fazendo como o maior abrigo, que é o “Bandera Rossa”) o socialismo; isso se dá na inevitável constituição mobiliária, antiga e desgastada, na sala de um pai que espera o filho, abastecido pelas esperanças que somente os ambientes e ares antigos conseguem segurar (tudo se passando numa dessas ruas de São Paulo que ainda conseguem lembrá-la árida e feia na década de 70), e daí a recusa em abrir a janela, ou trancar o quarto… Momentos antigos que, infelizmente, ganham mais ares saudosistas ainda na figura entristecida do saudoso Carlão Reichenbach (cumprindo papel, sim): com protagonismo que só encontra algum escape feliz na figura da cadelinha Baleia – tudo isso resulta mesmo estranho e lindo.

Por outra, é incrível como o diretor carrega em si mesmo um humor bastante peculiar (algo que vagueia entre o sarcástico, o desacreditado, o proveniente de rara astúcia observacional do entorno – isso, para quem o conhece pessoalmente, fica bastante evidente, tanto quanto faz parte indissociável de sua personalidade), e no filme se o nota exercendo-o fartamente: pode ser sutilmente nos reclamos e constatações para si mesmo proferidos por André; incisivamente, na sequência em que o Eduardo Valente se traveste de taxista meio maluco (com direito a escudo do Clube de Regatas Vasco da Gama no volante) proferindo sua paixão por hinos; ou mais incisivamente ainda, no momento em que é levado o velho projetor Super-8 para o concerto, o que destina a uma figura rara, que faz obras plásticas estranhas, filmes baseados num Dogma 2002 (algo para detonar o Movimento Dogma 95, engendrado por Lars von Trier e Thomas Vinterberg), e que gera interação repleta de grandes sacadas partindo de um impaciente André Gatti – esses dois últimos momentos, movidos por bem-vindos planos-sequência.

Imagens antigas parecem atiçar e remeter Michael Wahrmann à confecção cinematográfica: seu pregresso como curta-metragista (em Avós, ou em Oma, remete imediatamente a pensá-lo um apropriador de momentos passados e “reais” para, a partir deles, exercer o quinhão importante da arte que tem a ver com a criação como um fator importantíssimo (um dos mais,com certeza) pela manipulação na hora da edição/montagem: Avanti Popolo tem sua alma mais ainda fortificada (indo para além de ser um belíssimo trabalho no seu todo) justamente pela apropriação que ele faz das imagens do seu antigo professor, André – e por esses meandros parece saber como poucos conduzir suas intenções. Momentos que rompem sutilmente as “situações criadas” para emendá-las com as imagens “reais”, criando fluxo de senso entristecido, e constante (repetido a contento) na forma da narrativa proposta (que é de uma espécie de “ir e vir”: de mundo de recordações para a realidade). E soa nonsense suficientemente “colável” no diretor imaginar que entre as situações engraçadas, a coisa do “dogmista” (que diz ser uma das regras de seu movimento a confecção de filmes somente com a apropriação e junção de imagens filmadas por outros) possa ser uma autogozação.

P.S.: há a junção que se dá de alguma maneira quando ocorre a “união” do trio, criando a sensação da volta do filho pródigo: e sim, como não remeter a sensação ao instante bíblico que faz do filho distante, do pródigo, o que é o ansiado pelo pai, enquanto o que está mais próximo, mais presente – mesmo que nem sempre -, jamais receberá o mesmo calor que a espera insere no peito de um pai que aguarda (sendo que é sempre válido lembrar que pródigo significa o que esbanja o patrimônio: no caso, se poderia dizer que prodigalidade aqui se dá na gastança da esperança do pai Gatti).

Texto originalmente publicado no site www.cinequanon.art.br