DISTRIBUIDORA LANÇA “A TRILOGIA DE APU” EM DVD, JUSTIFICANDO SEU NOME DE “OBRAS PRIMAS”.

Por Celso Sabadin.

Ainda esta semana, eu conversava com um grupo de amigos e colegas que participaram ativamente do nascimento do mercado de home vídeo no Brasil (um pessoal carinhosamente apelidado  de “A turma do VHS”), e discutíamos qual será – se é que haverá – o futuro do DVD.

Mercadologicamente falando, parece ser senso comum que o formato desaparecerá. Porém – e sempre há um porém – alguém lembrou de um nicho de consumidores muito fiel e específico: os colecionadores. Claro que poderemos ter todos os nossos filmes favoritos confortavelmente armazenados em HDs ou nuvens, mas a pergunta é: isso tem graça? Onde ficará o prazer do manuseio de uma bela embalagem de DVD? De colocá-la nas prateleiras, seja em ordem alfabética, por gênero ou até ordem de preferência? Ou ordem nenhuma. Vamos abrir mão destas edições caprichadas que trazem reproduções de fotos e/ou cartazes dos filmes? E os extras? Uma pequena esperança pareceu ressurgir: talvez o DVD, assim como o vinil, não morra nunca. Talvez ele se torne eternamente cult. O tempo dirá.

 

Voltei a pensar nesta história ao saborear, em DVD, “A Trilogia de Apu”, que a distribuidora Obras Primas do Cinema acabou de lançar no mercado. Trata-se de uma caixa visivelmente editada com muito carinho e profissionalismo, com belo projeto visual, cards, extras, e uma qualidade de imagem de encher os olhos. Coisa de quem realmente gosta de cinema. Se eu procurasse, talvez encontrasse os filmes na internet, não sei, e poderia baixá-los e arquivá-los em alguma nuvem qualquer. E aí vem novamente a pergunta: tem graça isso? Um clássico mundial desta envergadura merece cada grama do acrílico e do papel cartão utilizado para embalá-lo neste charmoso pack em DVD. E cujo dono tem o prazer de exibi-lo em sua estante de obras primas.

 

Para quem não conhece, a “Trilogia de Apu” é composta pelos longas indianos “A Canção da Estrada”, “O Invencível” e “O Mundo de Apu”, produzidos respectivamente em 1955, 1957 e 1959, todos dirigidos por Satyajit Ray, considerado um dos maiores cineastas indianos de todos os tempos. Em sua vitoriosa carreira de quase quatro décadas (de 1955 a 1991), Ray colecionou nada menos que dois prêmios em Cannes, cinco em Veneza e seis em Berlim. Na terra dele, então, foi covardia, tendo sido premiado em 14 oportunidades no National Film Awards, uma espécie de Oscar indiano.

O curioso é que “A Canção da Estrada”, onde já se percebe claramente a grande sensibilidade cinematográfica de Ray, é justamente seu filme de estreia como diretor, e que já lhe rendeu vários prêmios internacionais.

 

Apu, o personagem central da trilogia, é um jovem indiano que nasce no seio de uma família muito pobre e passa por inúmeros percalços para tentar crescer, amadurecer e viver com dignidade. O primeiro capítulo, “A Canção da Estrada”, mostra a família de Apu antes mesmo de seu nascimento, e o pequeno

vilarejo na região de Bengala onde tudo tem início.  É possível ver no filme algumas referências autobiográficas relativas ao diretor, como, por exemplo, o pai da família, desejar ser um escritor de sucesso, sendo que o pai de Satyajit Ray foi efetivamente um poeta e escritor reconhecido na Índia. Mas não se trata de uma autobiografia, mesmo porque a extrema pobreza não assolava a família de Ray, como faz com os personagens do filme.

“A Canção da Estrada” é eminentemente rural, retratando uma faceta da Índia subdesenvolvida e quase feudal, no período em que o país ainda era colônia britânica. O pequeno Apu nasce e passa a infância envolvido pela simplicidade e pela ingenuidade do interior, entre frutas roubadas pela irmã Durga, os sonhos poéticos do pai, e a objetividade pragmática da mãe. As extremas dificuldades econômicas parecem não fazer parte de seu mundo. É ali que, graças a Durga, Apu realiza o seu sonho de menino: ver um trem de perto.

No segundo filme, “O Invencível”, as dificuldades da vida no campo fazem com que Apu, agora com 10 anos, passe a viver na cidade santificada de Benares. A urbanidade muda quase tudo em sua vida, desde a paisagem até as relações com os vizinhos. Saem de cena os belos e frondosos pomares da infância, e entram as águas sagradas do lugar. Uma tragédia, contudo, faz com que Apu e sua mãe sejam obrigados a voltar ao campo, mas agora o garoto tem outros planos: o estudo, uma vida melhor. Os conflitos serão inevitáveis. E os trens, que ele tanto admirava quando criança, passam a ser parte integrante do seu cotidiano. .

No terceiro episódio, “O Mundo de Apu”, vemos o protagonista já adulto, tentando realizar indiretamente o sonho paterno de se transformar em escritor. O cenário agora é Calcutá, uma cidade grande cheia de recursos, perigos e mistérios, mas a situação de pobreza parece jamais abandoná-lo. Junto com a maturidade vem o casamento, e com ele as alegrias, medos, tristezas, inseguranças e dúvidas de tudo aquilo que se chama, simplesmente, vida.

Se alguém já havia dito que a melhor maneira de ser universal é retratando a sua aldeia, Satyajit Ray seguiu este conselho de forma exemplar. A Trilogia de Apu é um retrato sensível, poético e emotivo de um rapaz que luta pela sobrevivência e pela dignidade, assim como milhões de outros pelo planeta, ao mesmo tempo em que desenha diante dos olhos do mundo uma Índia bela e misteriosa, insinuante e cruel, fascinante e assustadora.

Não bastassem todas as qualidades da Trilogia, os filmes ainda são musicados por um então jovem e desconhecido músico indiano, tão jovem e tão desconhecido como o próprio diretor: ninguém menos que Ravi Shankar, que iria se tornar referência da música da Índia em todo o mundo.

Imperdível, tanto pra quem não conhece, como para quem quer rever. E colecionar.