“DOUTOR GAMA”, POR UMA REPARAÇÃO HISTÓRICA.

Por Celso Sabadin.

Como eu nasci e me criei no bairro paulistano do Cambuci, Luiz Gama, pra mim, era apenas o nome de uma rua pertinho de casa que saía do Largo do Cambuci e que até chegaria ao bairro da Moóca, não fosse ela interrompida pelo Rio Tamanduateí e sua marginal Avenida do Estado.

Na escola (por sinal, do ladinho da Rua Luiz Gama) “aprendi” no então Curso Primário que os portugueses desistiram de tentar escravizar os índios e passaram a escravizar os negros porque os indígenas “não se adaptavam” ao trabalho escravo. Logo, os negros “se adaptaram”, né? Realmente, era um curso primário.

Muito mais tarde ainda, ao passar pela Luiz Gama, notei que as placas indicativas da rua não eram mais azuis com letras brancas – como as demais da cidade – mas pretas. Não entendi o motivo. Notei depois que a rua Machado de Assis (não muito longe da Luiz Gama) e a Avenida Rebouças também haviam trocado suas cores de azul para preto. Fui pesquisar o motivo e aprendi que a intervenção urbana visava homenagear os logradouros públicos cujos nomes retratavam pessoas negras.

E foi assim que eu, já adulto (muito adulto), aprendi que aquela rua que eu passei um zilhão de vezes na minha vida representava um homem negro defensor da liberdade contra a escravidão (Machado de Assis e Rebouças eu já sabia).

Tudo isso para dizer que a estreia – hoje, 5 de agosto – do filme “Doutor Gama” é muito mais que um simples lançamento cinematográfico: trata-se de uma importante reparação histórica que, aos poucos, muito aos poucos, tenta reduzir as incansáveis tentativas de apagar os negros da nossa vida, da nossa sociedade, da nossa História.

Com direção de Jeferson De (“M8: Quando a Morte Socorre a Vida”, “Correndo Atrás”, “Bróder”), e roteiro de Luiz Antonio, o longa acompanha a vida e a carreira de Luiz Gama (vivido em suas diferentes idades por Pedro Guilherme, Angelo Fernandes e César Mello), filho de uma africana livre (Isabél Zuaa) e de um português (Felipe Kannenberg). Aos 10 anos de idade, Gama é vendido por seu pai para mercadores de pessoas escravizadas e mandado para São Paulo. Conquista sua própria liberdade aos 18 anos e aprende a ler com a ajuda de um estudante de Direito. Este interesse pela leitura abre diversas portas para o desenvolvimento do homem que se tornaria.

Ao longo de sua vida, Luiz Gama alforriou, por vias judiciais, centenas de vítimas da escravidão. Obteve uma provisão para advogar, pois mesmo sem ter frequentado o ensino superior, provou ter todos os conhecimentos necessários. Sua missão era libertar e garantir o direito de pessoas em condições de escravidão – seus irmãos desvalidos como costumava dizer -, e exigir que as leis existentes no país fossem aplicadas.

Depois de ver a própria rua Luiz Gama rasgada e interrompida por uma Avenida simbolicamente denominada “do Estado”, depois de ter sido “catequizado” por um colégio de brancos que colocou na minha cabeças que os negros eram mais facilmente “adaptáveis” ao trabalho escravo, é bom tomar contato com uma obra audiovisual que nos traz um pouco mais da verdade da nossa História. Afinal, cinema também é isso. Ou deveria ser.

 

05/08/2021