“ELA VOLTA NA QUINTA”, CINEMA DE AFETO E CARINHO.

Por Cid Nader.

Ela Volta na Quinta é um filme de espaços, de tempos, de calma para cada situação contada. Filme em que André Novais Oliveira retoma os motes “carinho”, “intimidade”, para contar do que é seu de afeto, de coração, como tem feito em sua breve e absolutamente particular carreira como realizador: sendo que trata de dividir algo desses seus afetos com a medida de percepção de quem vê seus trabalhos conseguindo recolher da tela as sensações perpassadas do/dos que usa, enquanto de modo muito raro e particular consegue manter todas as estruturas base de construção fílmica no modo “ligadas”. O que ele concretiza nesse seu filme (que em diversas e diferentes escalas – diria que de alguma maneira evolutivamente – já vem concretizando pelo decorrer da carreira) é de total noção cinematográfica, onde, entre todos os atos técnicos, a manutenção do padrão de ficcionalização de seus personagens (que são reais em alguma medida, pois de seu núcleo real de criação ou de socialização) vigora fortemente, para que o quesito construção “de uma história” se complete: complete a obra que é capturada da tela pela retina do espectador.

Filme que inventa ações e segundas vidas para protagonistas que poderiam ser somente repetição do que são na vida “real” do diretor, indo um tanto aos dramas comuns e gerais, que poderiam ser de lá ou de alguma história singela qualquer pensada para que atores as vivessem por protagonistas artificiais – como é da atuação ser artificial, por mais que se entregue alma, por mais que se viva um personagem, por mais dedicação tenha sido entregue para a composição. E bate de maneira interessante a sensação de que o amadorismo dos “atores” (pais, irmão, cunhada e mulher de André) são trunfo quase inédito em toda a história do cinema: quase, porque há exemplos de construção que seguem essa vertente, se valem amadorismo, de ligações íntimas, ou até com ambas combinadas, mas creio nunca ter sentido nesses pares algo com tamanha fluidez, de tanta naturalidade.

A calma do filme em seus tempos e situações, o que sucede nele desde o primeiro take – e lembro aqui que um tanto antes, nos créditos que iniciam tudo, já se nota que a calma e sensibilidade vigorará, com algumas fotos antigas da família, desde o casamento aos instantes de juventude dos filhos, sob a beleza que é a interpretação de Cassiano na música “O Vale” – são assombrosas de tanta dessa fluidez citada permitem evidenciadas – diversas situações são resolvidas por longos planos-sequências, de conversas comuns, de atos do cotidiano. Sem esquecer que há momentos muito engraçados, o que é bastante comum em situações dessa intimidade sanguínea – e lembrando que essa é também uma característica bastante comum nessa galera da “Filmes de Plástico”, de MG, que está toda lá engajada na confecção deste trabalho, e que também usa cada uma seus núcleos de criação ou parceria em algum momento da carreira -, André entrega-nos um trabalho quase hipernaturalista, onde tudo se sucede como se fosse mesmo a vida comum sendo capturada por lentes ao modelo que Frederick Wiseman e seu “cinema observacional: mas sem ser, já que ficção. Ele dá passos à frente do que seria hipernaturalismo, somente, justamente nessa “brincadeira” em criar todo o jogo de dramaticidade com base desses atores amadores, mas que é muito mais ainda do que isso por valer-se da família representando-se a si mesma (cada um na sua função de origem), mas com situações criadas: sendo que há tanta facilidade nesse trânsito e na presença de todos em tela, que obviamente fica tentador pensar em monte das situações sendo de origem totalmente natural de cada um.

Sem gostar muito de referenciar obras e autores a outros – outro ato muito comum da crítica mais elaborada de meu entrono, mas que muitas vezes parece ostentação gratuita de conhecimento e adivinhação de intenções do criador da obra da vez -, e já tendo arriscado Wiseman, acima, lembro da conversa com a vizinha, entre o personagem principal (o pai na vida, o pai no filme) remetendo automaticamente à conversa travada em Era Uma Vez em Tóquio, após a morte da esposa, companheira de muitas décadas: com evidentes diferenças ambientais, de tempo, do fato de que no filme e Ozu a mulher havia falecido e aqui somente partido para um final de semana em Aparecida. Sem gostar muito de deixar claras minhas afeições (se bem que nem sempre consiga mesmo isso), impossível não admitir que estamos aqui diante de uma joia, de uma obra especial, tanto quanto André até o momento aparece como um alívio, um respiro especial nessa nossa cinematografia atual.

. Acho que alguém precisa me explicar – pessoa-crítico, mas que surgiu na função após muitos anos de dedicação e admiração da arte no papel de cinéfilo – a algumas razões que tanto exacerbam comportamentos de quem deveria ser mais avaliativo, mais contido, mas que acabam entregando facetas por vezes pré-definidas por pregressos de um autor, por má vontade com algumas cinematografias. Por que um filme tem de ser espetacular, pra mim, crítico? Por qual razão tenho de emendar discussões – e pior, textos – onde comparo e necessito emitir de alguma forma meu gosto, meus problemas ou festas para com algum filme, despejando o de que não gosto sem nenhuma alternativa para o inferno, enquanto elevo o outro às alturas: que por vezes, se sob luzes mais frias de análises, tem pegada e modos muito similares. A beleza e inventividade de Ela Volta na Quinta não combinam com comparações, não tem nada a ver com rixas que por vezes muitos dos de meu ofício arriscam demais.

Texto de Cid Nader pubicado originalmente em Cinequanon.art.br