EM DVD, “A CADELA” DESTILA SENSUALIDADE E VINGANÇA NA PARIS DOS ANOS 30.

Por Celso Sabadin.
 
A partir do romance homônimo escrito por Georges de La Fouchardière, em 1930, Jean Renoir roteirizou e dirigiu “A Cadela”, seu segundo filme sonoro.
 
Maurice (Michel Simon) é um homem abatido, entristecido, infeliz no casamento e ridicularizado em seu trabalho. Suas únicas válvulas de escape são os quadros que pinta e sua jovem amante Lulu (Janie Marèse) que, por sinal, o engana com o cafetão Dédé (Geroges Flamant, que anos depois estaria no clássico “Os Incompreendidos”). Pobre Maurice. As coisas pioram ainda mais quando ele descobre que Lulu e Dédé armaram um esquema para enriquecer com os quadros que ele tão amorosamente ofertava à sua amada. Assim, não há válvula de escape que resista.
 
É interessante fazer um paralelo entre os cinemas francês e norte-americano daquele 1931. Enquanto os EUA vivem o primeiro ano do rígido e retrógrado código Hays de censura cinematográfica, que proibia qualquer tema mais liberal, os franceses nadavam de braçada em filmes recheados de sensualidade e sexualidade. É o caso deste “A Cadela”(onde o título já é uma provocação): câmera livre, leve e solta, na rua, registrando a Paris dos anos 30 com ares documentais, a população interagindo com músicos ambulantes, personagens multifacetados destilando seus amores e rancores sem que nenhuma espada censória paire sobre suas cabeças. Leveza, poesia, sentimentos exacerbados, traições, vinganças, tudo transita num só fluxo vital neste cinema de fascínios de Jean Renoir.
 
Década e meia antes dos neorrealistas italianos, Renoir aqui já faz do universo aberto das ruas o seu palco de intrigas e emoções. O filme respira com frescor próprio. A vida pulsa nas calçadas.
 
Sem esconder o peso de ter sempre vivido à sombra do famosíssimo pai Auguste, Jean Renoir se aproveita do mau-caratismo de seus personagens para traçar uma ácida crítica contra a hipocrisia do mundo das artes plásticas, onde “o crítico faz o artista”, conforme diz alguém no filme. Pintados por um amador sem talento, presenteados a uma amante em troca de favores sexuais, assinados por um falso nome inglês, e comercializados por um gigolô em parceria com um marchand inescrupuloso, os quadros de Michel se tornam arte verdadeira (e cara) nas vitrines das galerias parisienses. É a fraude institucionalizada e filmada com sabores de vingança pelo filho de Auguste Renoir.
 
Olhos mais atentos verão, na cena final, que há inclusive um quadro do próprio Renoir exposto na vitrine que Michel – já totalmente marginalizado pela sociedade – admira do lado de fora. Em todos os sentidos que a expressão “lado de fora” possa assumir.
 
Destaque para o trabalho do suíço Michel Simon – então já ator consagrado de teatro cinema – que lançou mão de uma pesada maquiagem e de sua ótima postura corporal para aparentar muito mais que os 35 anos que tinha na época das filmagens. E um destaque triste para Janie Marèse, a cadela do título, morta em um acidente automobilístico poucos dias após o término das filmagens, com apenas 23 anos de idade.
 
Parte integrante de caixa “A Arte de Jean Renoir”, da Versátil, “A Cadela” foi refilmado por Fritz Lang, em 1945, com o título “Almas Perversas” (“Scarlet Street” no original).