EM DVD, CLÁSSICO “A CRUZ DA MINHA VIDA” RETRATA A AMÉRICA TRAVADA DOS ANOS 50.

O ano é 1952. Exatamente aquele período em que o cinema holywoodiano começa a se despedir dos filmes de temática mais adulta para iniciar um longo processo de namoro com o público jovem, o que viria a infantilizar sua produção. Um processo que permanece até os dias de hoje, diga-se.

“A Cruz da Minha Vida”, que a Colecione Clássicos lança em DVD, é um destes filmes feitos numa época em que Hollywood ainda prezava pelos dramas de enfoque adulto. A partir da peça teatral de William Inge (que depois escreveria “O Clamor do Sexo”), o roteiro de Ketti Frings esmiúça o cotidiano de Doc e Lola Delaney (Burt Lancaster e Shirley Booth), casal de classe média que vive em aparente – mas frágil – equilíbrio familiar. Ele, um médico fracassado que luta há um ano para largar o vício do álcool. Ela, fazendo o possível e o impossível para lhe dar apoio.

Como muitas donas de casa de sua geração, Lola abriu mão de tudo e de todos para tentar a ilusória solidez do casamento perfeito. Ouvir músicas alegres no rádio e dançar solitariamente pela sala são suas únicas válvulas de escape. De olhar distante e perdido, Doc caminha pela bela casa tipicamente americana como um autômato, inconsciente da rotina diária que repete incessantemente. Há um fortíssimo clima de tensão disfarçada no ar. Uma garrafa de uísque estrategicamente colocada no alto de um armário da cozinha paira sobre o casal como uma espécie de anjo vingador a lembrar que tudo pode desabar a qualquer momento.

A tensão entalada na garganta começa a tomar outros rumos quando o solitário casal aluga um dos cômodos da casa para Maria (Terry Moore, atualmente com 85 anos e ainda atuante no cinema e na TV), uma bela, jovem e esfuziante estudante que confrontará toda a sua energia radiante com a tristeza latente do velho casal.

O novo foco de conflito abre uma interessante dicotomia que extravasa os limites do próprio roteiro neste filme que, revisto hoje, ganha contornos até históricos: da mesma forma que Maria passa a ser um divisor de águas na vida de Doc e Lola, “A Cruz da Minha Vida” pode igualmente ser visto com um dos últimos remanescentes de uma época onde o jovem ainda não era encarado como mercado consumidor pela indústria americana em geral e hollywoodiana em particular. Repare como o casal “velho”, pelas roupas e atitudes, aparenta ter muito mais idade que os supostos quarenta e poucos de seus personagens (“Tudo isso aconteceu já há 20 anos”, diz Doc a Lola, referindo-se aos seus tempos de estudante”). Repare também como os personagens jovens tampouco encontraram ainda suas identidades rebeldes e joviais, o que aconteceria logo em seguida no cinema, principalmente através de James Dean, Paul Newman e Marlon Brando. É um cinema de transição, assim como de transição também era aquela sociedade norte-americana pós-Guerra e à mercê do Macartismo.

Trata-se de um filme que ao mesmo tempo em que se propõe a discutir temas mais sérios e profundos, se vê limitado em sua formatação pelo terrível Código Hays de Censura, que reinava soberano por ali (há, por exemplo, as indefectíveis camas separadas do casal). Digna de nota também é a tradução fatalista e cristã do título em português, que transforma o original “Come Back, Little Sheba” no dramático “A Cruz da Minha Vida”

Marcando a estreia na direção de Daniel Mann, o filme deu o Oscar de atriz e o prêmio em Cannes para Shirley Booth (do antigo seriado de TV “Hazel”, quem se lembra?), além de receber outra premiação, também em Cannes, de melhor produção dramática.
A imagem do DVD está excelente, mas as legendas em português de Portugal às vezes mais atrapalham que ajudam.