EM DVD, “PROCURA INSACIÁVEL” É DOCUMENTO HISTÓRICO DE UMA ÉPOCA.

Por Celso Sabadin.

Antes de se instalar em sua confortável poltrona e ligar o home theater para assistir ao DVD “Procura Insaciável”, é aconselhável tentar retornar, nem que seja por um breve instante, ao momento em que o filme foi feito: 1971. Era uma época em que os mais sólidos pilares da sociedade e das instituições estavam em fase de colapso. Poucos anos antes, as manifestações sociais e estudantis que eclodiram pelo mundo, ao lado do movimento hippie, das lutas pelos direitos das minorias e a disseminação das drogas já haviam sacudido a velha poeira que ainda pairava sobre o planeta. No cinema, ainda era muito recente a revolução provocada pelo filme “Sem Destino”, os grandes estúdios estavam em processo de desmanche, e uma nova geração de jovens e inquietos cineastas começava a despontar.

Vindo da então Checoslováquia (atual República Checa), Milos Forman não era exatamente um jovem cineasta, para os padrões da época. Afinal, ele já contava com avançados 39 anos, num mundo que conclamava que não se deveria confiar em ninguém com mais de 30. Foi neste panorama de contracultura que o quase quarentão realiza então seu primeiro filme norte-americano: “Procura Insaciável”. Formado pela Academia de Cinema de Praga, ele já havia realizado seis longas em seu país, entre 1960 e 67, mas não hesitou em abandonar tudo quando viu os tanques soviéticos invadirem a então Checoslováquia, na famosa Primavera de Praga: fez as malas e fugiu para os EUA. Para quem havia perdido os pais ainda muito cedo, presos pelo nazismo durante a 2a. Guerra, a visão de tanques invadindo a cidade certamente se revestiu de um significado muito especial.

Foi na América que, em parceria com John Klein (não confundir com o homônimo que escreveu “Encontros e Desencontros”), John Guare (que mais tarde escreveria a peça “Seis Graus de Separação”) e Jean-Claude Carrière (dono de uma obra vastíssima que já rendeu até o momento mais de 140 obras audiovisuais), Forman desenvolveu o roteiro de “Procura Insaciável”.

Diz a lenda que a trama do filme foi inspirada pela canção dos Beatles “She´s Leaving Home”. “She”, no caso, é personagem Lynn Tyne (vivida por Lynn Carlin, presença constante em seriados de TV até o final dos anos 80), uma adolescente que certo dia sai de casa sem avisar aos pais que vai participar de um teste para tentar ser cantora/atriz. Com a demora da filha em voltar, seu pai, junto com um amigo, sai pelas ruas à sua procura. Durante a busca, ambos se embriagam. Quando Lynn retorna, dá de cara com a patética cena que expõe sem retoques a hipocrisia daquelas pessoas da sala de jantar: dois homens maduros caindo de bêbados sendo reprimidos pelas suas esposas. Logo eles, que estavam preocupados com a possibilidade da garota ter saído para fumar um baseado.

O abismo entre a juventude emergente, que passa a ter vez e voz a partir dos anos 60, e a decadência dos valores da classe média é o maior mote do filme. Estética e estruturalmente, ele é inteiramente pontuado por canções interpretadas pelas várias garotas que, assim como Lynn, também estão participando do teste para atriz/cantora. Faltou à distribuidora legendar também as letras destas canções, que têm forte significado dentro da trama. A curiosidade fica por conta da presença de Kathy Bates, então aos 22 anos, estreando no cinema interpretando uma música de sua própria autoria.

Sem querer dar spoiler, o final é dos mais significativos, apresentando um personagem músico, hippie, que com suas canções de protesto ganha mais dinheiro que os personagens da classe média, tornando-se ele próprio um potencial burguês que usa sua contestação contra o sistema para integrar o próprio sistema. A visão do filme em já antever, em 1971, este mecanismo autofágico que será a mola mestra da cultura de massa é das mais marcantes e instigantes.

De montagem ágil e fragmentada e narrativa fluida, “Procura Insaciável” é um verdadeiro documento histórico de uma época que mudou os caminhos da sociedade do século 20.

Destaque também para o totalmente inadequado título em português (os pais de Lynn não têm nenhuma insaciedade na procura pela filha), tentando algum viés erótico-comercial naquele momento marcado pelas pornochanchadas.

O filme está na caixa “O Cinema da Nova Hollywood”, da Versátil.

Procura Insaciável (“Taking Off”, EUA, 1971, 92 min.)
De Milos Forman. Com Lynn Carlin, Buck Henry e Georgia Engel. Lançamento Versátil em DVD.