EM DVD, “TARTUFO”, DE MURNAU, SE MOSTRA CADA VEZ MAIS ATUAL.

Por Celso Sabadin.
 
Em seu célebre ensaio “De Caligari a Hitler”, referindo-se ao cinema alemão do período da República de Weimar (entre o final da I Guerra e a ascensão do Nazismo), o sociólogo alemão Sigmund Kracauer pergunta: o que os cineastas sabiam que nós não sabíamos? O questionamento se deve à temática de vários filmes daquele momento histórico que, conscientemente ou não, acabaram preconizando os horrores que estariam por acontecer na Alemanha e no mundo com a chegada de Hitler ao poder.
 
Neste sentido, “Tartufo” é uma obra das mais marcantes. A partir da peça de Molière, estreada em 1664, o cineasta F.W. Murnau desenvolve a história de uma empregada doméstica que engana seu idoso patrão para que ele lhe deixe todos os seus bens, em detrimento ao seu neto ausente, que seria o legítimo herdeiro. O rapaz, no dizer da empregada, estaria vivendo de forma leviana e desregrada, e teria se tornado – que horror – um ator! Quando o jovem volta de viagem para uma visita ao avô, ele logo percebe o ardil da mulher. Para desmascará-la, o neto (que realmente se tornara um ator) se faz passar por um exibidor ambulante de cinema, e consegue projetar para o avô e para a cruel empregada uma cópia de “Tartufo”.
 
O que vemos a seguir é o filme dentro do filme, um ousado experimento de metalinguagem cinematográfica realizado naquele distante 1925, momento em que a chamada sétima arte ainda dava seus primeiros passos. O tal filme dentro do filme (ambos se chamam “Tartufo”) mostra um milionário sendo enganado por um sujeito que se finge de religioso, que se diz avesso aos prazeres da vida mundana, mas cujo verdadeiro objetivo é transformar-se em herdeiro do homem a quem engana. O milionário encontra-se em estado praticamente letárgico, totalmente subserviente, cego e dominado pelos “ensinamentos” do falso profeta, a quem trata como um santo.
 
]No final das contas (o texto é do século 17, não chega a ser um spoiler), a máscara acaba caindo, e o filme brinda seus espectadores com o seguinte letreiro: “Todos nós somos indefesos perante os hipócritas. E você, sabe quem está ao seu lado?”. É estarrecedor saber que, oito anos após este filme, Adolf Hitler subiria ao poder, deixando todo um país em estado praticamente letárgico, totalmente subserviente, cego e dominado pelos “ensinamentos” do falso profeta, a quem tratam como um santo.
 
No caso brasileiro, que vive neste momento um pesadelo muito semelhante, com um demente com ideias hitlerianas assumindo o poder, “Tartufo” se prova ainda mais contemporâneo.
 
Além destes aspectos históricos, políticos e sociais que fazem de “Tartufo” uma verdadeira preciosidade, mais uma vez ratifica-se aqui a genial habilidade cinematográfica de Murnau, que conquista o espectador com total fluidez de narrativa e o apuro técnico que sempre foi uma de suas marcas registradas. Chama especial atenção uma cena interna noturna onde a fotografia do mestre Karl Freund (o mesmo de “Metrópolis”, e que depois faria carreira nos EUA) reproduz com precisão as luzes emitidas por um pequeno grupo em movimento portando velas e as consequentes sombras que elas projetam quando passam diante das ferragens adornadas de uma escadaria. Um primor.
 
A cópia restaurada, de excelente qualidade, faz parte da caixa Expressionismo Alemão volume 3, lançada pelo selo Obras Primas do Cinema.