EM DVD, “TRILOGIA DA ESTRADA” ANTECIPA “PARIS, TEXAS” DE WENDERS.

Por Celso Sabadin.  

Alemanha, meados dos anos 70. A Segunda Guerra Mundial havia terminado há apenas 30 anos, um tempo histórico muito curto para cicatrizar as terríveis chagas do conflito (talvez tempo histórico nenhum o consiga). O dia 6 de agosto de 1945 entra para a história como a infame data na qual não apenas uma, mas duas bombas atômicas foram lançadas contra o Japão, colocando um devastador ponto final na Guerra.

Oito dias depois, nascia em Düsseldorf, na já arrasada Alemanha, o garoto Ernst Wilhelm Wenders, que mais tarde ganharia o apelido de Wim. E se transformaria num dos mais conceituados cineastas do mundo.

Entre 1974 e 1976, Wenders realizaria três importantes longas metragens, todos inexoravelmente presos ao trauma não sepultado do pós-guerra, e todos flertando como o estilo “road movie”. Esta última característica fez com que estes filmes – “Alice nas Cidades”, “Movimento em Falso” e “No Decurso do Tempo”, lançados respectivamente em 1974, 75 e 76 – fossem batizados como “Trilogia da Estrada”, obra lançada agora em DVD pelo selo Obras Primas do Cinema, em mais uma caprichada coleção.

Apesar dos filmes serem protagonizados pelo mesmo ator (Rüdiger Vogler), tratam-se de histórias diferentes vividas por personagens diferentes, cada qual com sua personalidade e peculiaridade. Em todas elas, porém, Wenders aborda o típico homem solitário e perdido daqueles tão característicos anos 70, período de fortes transformações no mundo inteiro. Após a verdadeira convulsão social que se espalhou pelo planeta em diferentes revoluções de costumes acontecidas em 1968, o homem ocidental dos anos 70 se percebe sem rumo, nocauteado pelo fim das utopias, na busca por um novo tempo que teima em não despontar no horizonte. São dúvidas, silêncios e vazios que, no caso específico da Alemanha, somam-se a um denso sentimento de culpa advindo do pós-guerra.

 

 

ALICE NAS CIDADES (Alice in den Städten, Alice in the Cities: 1974, 112 min). Com Yella Rottländer, Rüdiger Vogler, Lisa Kreuzer, Edda Köchl.

O jornalista alemão Philip Winter (Rüdiger Vogler) precisa entregar ao seu editor uma grande matéria sobre os Estados Unidos. Mas durante a viagem que faz pela América, Phillip não consegue escrever. Apenas fotografa, registrando com seu olhar atento as mais diversas facetas da vida e da paisagem norte americanas. Para isso, ele prefere usar uma câmera polaroide, que lhe mostra o resultado da foto poucos segundos após o ato de fotografar. E se justifica: tem medo de não estar vendo exatamente a realidade, e precisa da confirmação mecânica e imediata de sua polaroide para se certificar que não está sendo enganado pelos seus próprios olhos, neste país tão afeito às ilusões.

Porém, o pragmático editor não quer fotos, e sim textos, e acaba demitindo seu jornalista. Phillip decide então retornar à Alemanha. É no aeroporto que ele conhece a perturbada Lisa (Lisa Krauser) e Alice (a ótima Yella Röotlander, que não seguiu carreira), sua filha de nove anos, duas personagens que mudarão definitivamente sua vida.

Fotografado num belíssimo preto e branco, “Alice nas Cidades” ganhou o Prêmio de Melhor Filme pela Associação dos Críticos da Alemanha, naquele ano.

 

MOVIMENTO EM FALSO (Falsche Bewegung, Wrong Move, 1975, 104 min). Com Rüdiger Vogler, Hanna Schygulla, Hans Christian Blech, Nastassja Kinski.

Com roteiro inspirado por “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe, “Movimento em Falso” é bem mais cifrado e menos palatável que “Alice nas Cidades”. Se em “Alice nas Cidades” Rüdiger Vogler interpretava um jornalista que não conseguia escrever, aqui ele vive Wilhelm, um escritor exatamente com o mesmo problema.  Em busca de inspiração, ele faz uma viagem de trem, onde encontra alguns tipos entre bizarros e poéticos que acabam o acompanhando nesta jornada cheia de simbolismos. Entre eles, uma bela e misteriosa atriz (Hanna Schygulla, que seria uma das atrizes mais icônicas do cinema alemão dos anos 80), um atleta que participou das Olimpíadas de 1936 (não por acaso, a Olimpíada que Hitler utilizou como propaganda nazista), e uma jovem malabarista (estreia no cinema de Nastassja Kinski, aos 14 anos, aqui assinando como Nastassja Nakszynski).

Vencedor de seis prêmios no German Film Awards (incluindo direção), “Movimento em Falso” faz lembrar aquela famosa frase que diz “estar provado que só é possível filosofar em alemão”.

 

NO DECURSO DO TEMPO (Im Lauf der Zeit, Kings of the Road, 1976, 175 min). Com Rüdiger Vogler, Hanns Zischler, Lisa Kreuzer, Rudolf Schündler.

Em “No Decurso do Tempo”, Rüdiger Vogler toma emprestado o mesmo sobrenome do personagem que viveu em “Alice nas Cidades” e interpeta Bruno Winter, um técnico de projeção cinematográfica que viaja pela Alemanha visitando e consertando pequenas salas de cinema decadentes. Se em “Movimento em Falso” ele e seus amigos no trem impedem um suicídio, aqui ele testemunha uma patética tentativa de suicídio, na qual o pediatra Robert Lander (Hanns Zischler) mergulha num lago à bordo de seu possante fusquinha, e fica com a água pela cintura. Robert passa então a acompanhar Bruno em sua peregrinação rodocinematográfica, e ambos desenvolvem uma intrigante amizade quase muda, onde um não sabe nada da vida do outro – e nem querem – e mesmo assim dividem momentos de cumplicidade, dramas e risos.

“No Decurso do Tempo” levou os prêmios de Melhor Filme pelo júri oficial do Festival de Chicago e pelo júri da crítica em Cannes.

É interessante notar como “Paris, Texas”, que consagraria definitivamente o diretor ao ganhar a Palma de Ouro em Cannes (além de dezenas de premiações) em 1984, já rondava a mente de Wenders na época em que ele realizou esta trilogia. “Alice nas Cidades”, “Movimento em Falso” e “No Decurso do Tempo” trazem embriões de vários elementos que amadurecerão e se completarão na famosa obra que Wenders faria anos depois. Entre elas, a solidão; os desencontros silenciosos; as vidas vividas sob culpas, medos e reflexões; os grandes planos abertos e vastos espaços a serem percorridos. Ou, talvez, preenchidos. O homem perdido na imensidão da geografia que ele jamais conseguirá preencher. Além, é claro, da forte presença da trilha sonora composta por músicas norte-americanas. Afinal, como diz um dos personagens de “No Decurso do Tempo”, “ao americanos colonizaram nosso subconsciente”.

Esta bela edição de “Trilogia da Estrada” ainda traz mais de quatro horas de extras com entrevistas, cenas que não foram utilizadas na edição final, e curtas metragens dirigidos por Wim Wenders.

Indispensável para colecionadores.