EM DVD, VERSÃO 1920 DE “O MÉDICO E O MONSTRO” ATRIBUI CULPA AO TESÃO.

Por Celso Sabadin.

Publicado em 1886, o conto “The Strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, do escocês Robert Louis Stevenson (o mesmo autor de “A Ilha do Tesouro”), sempre foi um dos pratos literários preferidos das adaptações teatrais e cinematográficas. A embalagem especial “Horror Mudo”, do selo Obras Primas do Cinema, lança em DVD duas versões deste popular “O Médico e o Monstro”, título pelo qual o conto ficou conhecido no Brasil: o curta metragem de 1912 (direção de Lucius Henderson, com produção da Thanhouser), e o longa de 1920 dirigido por John S. Robertson, produzido pela Famous Players-Lasky Corporation, a futura Paramount. Como material extra, o lançamento também traz 15 dos 40 minutos originais de uma outra versão, também de 1920, dirigida por J. Charles Haydon e produzida por Louis Mayer (não confundir com o lendário Louis B. Mayer, da Metro) para a Pioneer.

A cereja do bolo, sem dúvida, é o longa. O papel principal duplo de médico e monstro – o sonho de todo ator para exibir sua versatilidade – foi entregue a John Barrymore, que talvez as novas gerações conheçam apenas como sendo o avô da popular atriz Drew Barrymore, mas que foi um grande nome do teatro e do cinema norte-americanos dos anos 1910 até o início dos 1940. Neste roteiro adaptado por Clara Beranger, ele vive o bondoso médico Dr. Jekyll, conhecido por dedicar-se tanto à profissão que acaba deixando sua vida pessoal em segundo plano. Ou talvez em nenhum plano. Certa noite, Jekyll é persuadido por um amigo a acompanhá-lo numa noitada numa casa noturna, onde acaba conhecendo a sensual bailarina Gina (Nita Naldi), que lhe acende um inesperado desejo.

Jekyll fica então totalmente perturbado pela libido que sente pela primeira vez (vale lembrar que o conto foi escrito no ultra-conservador período vitoriano da história britânica), e é acometido de uma terrível culpa. Na verdade, ele tem pavor que este seu novo sentimento, digamos, selvagem, possa prejudicar o relacionamento com a namorada Millicent (Martha Mansfield), com quem mantém um romance virginal. Ele decide então criar uma poção que lhe desenvolverá uma dupla personalidade, a do Mr. Hyde (não por acaso, nome com a mesma sonoridade de “hide”, esconder), um verdadeiro monstro ao qual o tesão é permitido, enquanto a pureza do bondoso Dr. Jekyll ficaria garantida. Obviamente, algo sairá errado.

Ainda que claramente inspirado na milenar mitologia alemã do Dopelgangger (o Duplo), o conto de Stevenson trabalha com maestria as questões sociais e puritanas de sua época: a culpa pelo desejo sexual, a necessidade doentia das máscaras sociais, a hipocrisia, a soberba da Medicina (e de vários de seus médicos), o pecado e a luxúria.

Seu diretor, John S. Robertson, foi um dos pioneiros da história do cinema, trabalhou também como ator, dirigiu mais de 60 curtas e longas entre os anos 1910 e 1930, aposentou-se em 1935, e faleceu em 1964, aos 86 anos, longe do mercado cinematográfico.

Martha Mansfield, que interpreta a namorada de Jekyll, teve um final trágico: morreu três anos após filmar “O Médico e O Monstro”, quando seu vestido de época se incendiou durante as filmagens de “The Warrens of Virginia”, inédito no Brasil. Ela tinha apenas 24 anos.

Ironicamente, Robert Louis Stvenson nunca chegou a ver nenhuma das adaptações cinematográficas que fizeram de sua famosa obra: ela morreu em dezembro de 1894, um ano antes do cinema ser inventado.

Além de “O Médico e o Monstro”, a embalagem especial “Horror Mudo” ainda traz os clássicos “O Corcunda de Notre Dame” (versão de 1923, de Wallace Worsley), “O Fantasma da Ópera” (Rupert Julian, 1925) e o imperdível “A Carruagem Fantasma” (Victor Sjöström, 1921), que serão aqui analisados em breve.