EM “O DÉCIMO HOMEM”, BURMAN ABORDA NOVAMENTE AS RELAÇÕES FAMILIARES.  

Por Celso Sabadin.

“O Décimo Homem” é aquilo que se pode chamar de um típico filme argentino: roteiro esperto, produção enxuta, ótimas interpretações e humor sarcástico. Só faltou o Ricardo Darín, mas tudo bem, mesmo porque o roteiro e a direção são do ótimo Daniel Burman, o mesmo de “O Abraço Partido” e “Ninho Vazio”. Aqui, novamente Burman se debruça sobre dois de seus temas preferidos: suas relações conflituosas com a família e com o judaísmo. E novamente com muito talento.

Logo na primeira cena vemos Ariel (Alan Sabbagh), em Nova York, falando por telefone com seu pai, Usher (Usher Barilka), que está em Buenos Aires. Não é preciso muito tempo para perceber o distanciamento da relação, não apenas pela frieza dos tons das vozes, como pelo fato de Usher, a poucos minutos de Ariel embarcar de regresso à Argentina, pedir ao filho uma daquelas encomendas difíceis de serem conseguidas, só para ter o prazer de mais tarde poder dizer ”você não trouxe o que eu pedi”. Ainda na mesma cena, ficamos sabendo que Ariel tampouco cumprirá uma outra promessa feita anteriormente ao pai, o que amplifica o peso e a responsabilidade da encomenda que jamais será comprada. Em suma, numa única cena inicial, em poucos minutos de um diálogo tenso, uma breve aula de roteiro, apresentação de personagens e construção de conflitos. Cinema pensado.

A chegada de Ariel a Buenos Aires revela que seu pai é o tal “Rey del Once” do título original. Once é como é conhecida uma região da capital argentina repleta de lojas populares, algo similar à 25 de Março, em São Paulo, ou ao Saara, no Rio. É ali que Usher comanda com mão de ferro uma entidade assistencial voltada para a população carente da região. Apoiado pelo suposto excesso de afazeres que a entidade lhe exige, Usher usa o trabalho como escudo de seus próprios sentimentos, lançando mão de todos os subterfúgios possíveis para não só evitar o encontro pessoal com o filho, como para também atormentá-lo insistentemente pelo telefone, transferindo-lhe cada vez mais tarefas. O que falam sobre as mães judias pode ser multiplicado por cem para este cruel e manipulador pai judeu.

Em sua jornada pela busca do pai – épica, mesmo sem sair do mesmo bairro – Ariel é perseguido por uma antiga questão que sempre lhe perturbou, mas que assume maiores proporções neste seu retorno à casa: a origem e os motivos de algumas tradições judaicas que ele não consegue compreender.

Neste espécie de releitura porteña da parábola do Filho Pródigo, será verificado que a compreensão não é exatamente o motor das ações. Talvez muito pelo contrário.

Uma curiosidade final: Once (“onze” em castelhano) é o apelido popular do bairro portenho que se chama oficialmente Balvanera. O nome vem do terminal de trem que lá se encontra, denominado “Once de Septiembre”, que por sua vez é uma referência a 11 de setembro de 1852, data em que o Estado de Buenos Aires se separou do resto da Argentina. Ou seja, por vias das mais indiretas, Burman faz aqui uma espécie de seu “onze de setembro” particular e afetivo.

A estreia no Brasil foi em 5 de maio.