“ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”, E A MÁSCARA CAI

Mais claro que isso, impossível. O filme nada tem a ver com cegueira física e muito menos retrata o deficiente visual como depravado. Depravados somos nós, que enxergamos e vivemos em completa falta de luz por pura hipocrisia. Este é o filme. Fala sobre o egocentrismo e a degeneração humana provocada por nós em prol de puro narcisismo.
Sempre fui apaixonada por cinema e sou eclética, nada de títulos, patamares, escolas ou outros rótulos, gosto do que gosto. E para os que me conhecem, quando gosto, me apaixono. Uma vez na escuridão das salas de cinema, deixo-me levar pela história e não me permito ser influenciada antecipadamente por opiniões, porque de toda a obra sempre escapa um olhar que pode ser uma verdade. Afinal, Nietzsche já dizia que a verdade não é nada além de um ponto de vista.
Como sempre faço, completamente desarmada de argumentos, sinopses e bagagem histórica fui ao cinema para verificar o filme de Fernando Meirelles, baseado na obra do Nobel José Saramago, “Blindness”, Ensaio sobre a Cegueira. Me fisgou. É um dos filmes mais profundos que já senti. Digo senti, porque tive que vendar todos os meus olhos, físicos e alma, para tentar mergulhar na história, desta vez não como espectadora, mas como ser vivo que procura algo em meio à obscuridade que momentaneamente envolve o planeta. No trocadilho, pela minha visão, pude olhar a obra e o ser sem pudor, subterfúgios, conceitos e outros artifícios que insistentemente utilizamos para explicar nossas atitudes. Essa produção que fala da degeneração humana, da insaciedade humana com relação a vida, a conquistas, a futuro e a desejos.
Em meio a tanta hipocrisia, eu, apenas mais uma na multidão, pude conceber quão imperfeitos todos somos e seremos, porque simplesmente, a perfeição, mesmo que exista, não tem valor.

O quão fúteis e descartáveis são nossos super valorizados preceitos e sem falar no julgamento que é totalmente desprovido de qualquer tentativa de analisar, mas sim, totalmente munido da intenção objetiva de denegrir e piorar o outro diante de nós.
O narcisismo, disfarçado em cada um de nós pelas roupas, títulos, posições, bens e outros tantos alienados conceitos atrelados às nossas vidas em uma tentativa estúpida de encobrir o instinto de sobrevivência que nos move.
“Ensaio sobre a cegueira” mostra pelo excesso de luz o quão somos mais cegos do que os que nasceram sob ou adquiriram uma deficiência visual.
Ditados antigos que ouvimos desde crianças como “O pior cego é aquele que não quer ver” ou “Em terra de cego quem tem um olho é rei” são retratados no filme de maneira inversa.
O primeiro no personagem que é o único cego de nascença que vive no confinamento. Ele se adapta em um mundo onde ele tem que sobreviver sozinho e em constante vantagem. Ele não percebe que a única maneira de sobrevivência entre os seres é a convivência desinteressada e que não há luz para quem caminha sozinho.
O segundo, o velho que já perdera um olho e mesmo com a cegueira momentânea, foi sábio e impediu o movimento de medo gerado pela morte do “rei” de outra ala que propunha entregar aos lobos, a única mulher que enxerga e que por sobrevivência tira a vida do “rei”. Sobrevivência? Ou ego, vaidade, por se sentir massacrada e impotente por um macho que se intitulou dono das alas. Ou apenas por se engrandecer perante a condição de única com visão onde todos dependem dela o que a coloca em um patamar de superioridade.
O filme de Meirelles, é uma análise de quanto de degeneração podemos agüentar em prol de sobrevivência e o quanto nos despojamos de integridade, orgulho, vaidade, delicadeza e conceitos quando somos submetidos a provações e desordens que nos tiram do nível de segurança. Como vítimas desta cegueira branca e fictícia se transformam em figuras inseguras e vulneráveis e terminam por seguir qualquer um que lhes estenda uma mão guia, forte, que tome decisões em seus lugares. É a fraqueza humana que retira o ser do seu papel principal e o transforma em figurante, com ou sem fala, submetido à vontade alheia, isento de responsabilidade de qualquer coisa que aconteça em meio a velocidade e proporção que transcendam as modificações.

Fernando Meirelles, me emociona em um momento de mudanças cinematográficas no mundo e principalmente no Brasil onde a maturidade e a confiança começam a despontar. Mas ao mesmo tempo, me choca. Pois, a verdade implícita em seu filme, é conhecida por todos nós e ainda não consegui vislumbrar, além de discursos bem intencionados, o menor movimento em prol da recuperação do equilíbrio humano rumo ao desenvolvimento.
Como nada é perdido e a luz sempre volta com menos brilho e mais claridade no final, onde alguns, após alguma provação, já começam a imaginar o que poderia ser modificado em nossos intocáveis conceitos. “Ensaio sobre a cegueira” banaliza de vez o velho discurso sobre a ética que na verdade só é respeitada até a página nove que é da nossa temperança; passou daí, afogam-se estes velhos conceitos e entra a lei do mais forte, da sobrevivência, do interesse.
O filme de Meirelles nos coloca em nosso lugar, como um velho quadro na parede, cuja moldura é o antagonismo ou seja, a necessidade de ser o oposto, contraditório e contraposto de tudo o que nos é apresentado ou oferecido como verdade. O ego não permite a complacência e a abstenção de uma discussão, pois é necessário lutar, nem que seja por banalidades. Essa luta e que nos impulsiona a querer transpor o limite imaginário que nos colocamos a todo o momento na intenção de nos presentearmos com uma magnitude de algo que nos valorize.
A cegueira branca, no final, dá lugar a luz . E a visão da única personagem, dá lugar a impotência gerada pela retirada do santuário a que ela fora colocada. De mera coadjuvante sem grandes atrativos intelectuais ou profissionais, a personagem interpretada com maestria por Juliane Moore, passa a ser arrimo de um grupo completamente diversificado e aleatório com pessoas de todos os níveis, raças e complexidades.
Ela é a maioria de nós, pois não seguimos nossas vidas pautadas nos sonhos e conquistas por diversas razões, e para não nos sentirmos mutilados, nos transformamos em soldados que lutam batalhas alheias apenas para satisfazer o ego.

Este filme me fez lembrar de uma cena em um outro produzido pelo México e Estados Unidos onde um cego pede a uma moça que descreva como está o dia em New York. E ela começa a falar que é aquele é um dia comum na cidade, muitas nuvens, pessoas caminhando rapidamente, uma árvore que começa a florir e ele pergunta a cor das flores e fica admirado com as respostas que para ela não passavam de banais pois o dia era banal, mas para ele era um prêmio e ainda completa com um sorriso e a frase:..puxa, eu adoraria ver isso.
A nossa cegueira é medo que não nos permite ver e valorizar o belo, o comum e o simples, assim como, nos afasta de pequenas batalhas, que apesar de verdadeiras, nos retiraria de tantas ostentações. Quando uma obra cinematográfica é capaz de mudar conceitos, a arte se fez. E em seu papel principal.