ESTEREÓTIPOS DO MUNDO ÁRABE.

Por João Morris.

O filme Papicha (foto), da diretora de ascendência argelina Mounia Meddour, suscita questões relativas à representação no cinema da realidade local em países árabes.

É um filme de registro realista, que conta a história de jovens universitárias na capital Argel nos anos 90, quando a Argélia passava por uma guerra civil. Essas jovens levam uma vida tipicamente ocidental, não usam o hijab (véu muçulmano), vestem jeans e frequentam boates (clandestinas na época). O filme mostra a amizade, as aspirações e desejos de liberdade dessas garotas vivendo num país islâmico em guerra.

O problema de Papicha é que, ao usar a repressão vigente na Argélia como pano de fundo, o filme adquire um tom um tanto binário e apelativo. Nada é informado do que acontece no país, apenas sabemos que policiais truculentos vigiam as ruas e que há perigo iminente de prisão ou morte ao sair de casa. Quase nada é mostrado sobre a cultura local e as ruas da cidade durante o dia e o filme não faz nenhuma referência ao contexto social e político que o país atravessa.

Mas, a dicotomia dos “bons” e dos “maus” é logo estabelecida no filme. As mulheres muçulmanas com vestimentas pretas são fanáticas e agressivas em contraste às jovens alienadas, felizes, preocupadas com a carreira, o futuro e a vida afetiva com jovens ricos, brancos e “de bem”. Os homens são retratados como guerrilheiros islâmicos, estupradores em potencial, ingênuos ou machões e apenas o finado pai da protagonista é “bom”.

Papicha é um típico exemplo do que ocorre com vários filmes vindos de países em desenvolvimento hoje. São filmes feitos por diretoras e diretores quase sempre “cooptados” por produtores ocidentais e que usam um tom simplista e caricatural, quando não panfletário, para denunciar uma realidade local. Sem dúvida, a denúncia da violência e das atrocidades cometidas contra mulheres, grupos minoritários e excluídos em várias partes do mundo é relevante e necessária, e o cinema é um veículo potente para este tipo de denúncia. No entanto, ao estereotipar personagens, exacerbar situações e absolutizar a verdade, muitos filmes de ficção realista correm o risco de esvaziar a denúncia. O recorte que várias diretoras e diretores, principalmente de países islâmicos, vêm fazendo da realidade local me parece um tanto pasteurizada e sanitizada. Há também quase sempre o elemento “chocante”.

Esta tendência talvez ocorra por pressão de produtores ocidentais, talvez pela escola frequentada pelos cineastas, por falta de repertório, ou até mesmo para agradar ou chocar as plateias de festivais em que estes filmes geralmente são lançados. E se saírem bem na fita para obterem distribuição internacional.

Muitos desses filmes são tecnicamente impecáveis, com belas imagens, fotografia esmerada, mas quando o apelo deslavado às emoções e a chancela do “baseado em fatos reais” se sobrepõem ao enredo e à narrativa, acabam por trilhar um caminho já conhecido de filmes hollywoodianos e europeus, tornando-se quase sempre um pastiche da realidade e, em nome da “verdade”, abusam dos clichês e enfraquecem o conteúdo social e político do filme, resvalando para o maniqueísmo ou reforçando estereótipos.

No caso do filme Papicha, uma coprodução da França, Bélgica, Catar e Argélia, em que pese o esforço da diretora de contar a história sob uma ótica feminista e denunciar como o fundamentalismo religioso na Argélia impacta a vida das mulheres, a complexidade é deixada de lado para dar lugar a uma ideia única. Não há nuances e as personagens são tão somente vitimas de um sistema cruel que as oprime.

Ora, a população muçulmana do mundo atualmente soma mais de 1.8 bilhão de pessoas. Supondo que quase a metade é do sexo feminino, a realidade do dia a dia das mulheres em diferentes países muçulmanos passa por vários matizes, filtros locais e aspectos culturais, que certamente vão além dos dogmas de gênero, ideias preconcebidas e valores ocidentais sedimentados.

Em recente artigo no jornal New York Times, o diretor americano Martin Scorcese afirmou que “muitos dos filmes atuais são produtos perfeitos fabricados para consumo imediato. Muitos deles são bem feitos, por equipes de indivíduos talentosos. Ainda assim, lhes falta algo de essencial ao cinema: a visão unificadora de um artista individual”. Creio que, no caso de Papicha, a diretora Mounia Meddir não soube ou não quis avançar na discussão que o filme propõe, e optou por ficar apenas na denúncia.

Há, talvez, um desgaste na fórmula de mostrar a violência e opressão contra mulheres árabes no cinema, que carece de mais filmes mostrando como essas mulheres, uma vez empoderadas, estão se desenvolvendo na cultura em que estão inseridas.

Nos últimos anos, vários filmes feitos por cineastas árabes abordando a situação das mulheres em países islâmicos foram lançados comercialmente no Brasil. Alguns exemplos incluem A Separação (2011), do diretor iraniano Asghar Farhadi, E Agora, Onde Vamos? (2011), da diretora libanesa Nadine Labaki, A Fonte das Mulheres (2011), do diretor romeno Radu Mihaileanu, O Sonho de Wadjad (2012), da diretora saudita Haifaa Al-Mansour, Garota Sombria Caminha pela Noite (2014), da diretora iraniana Ana Lily Amirpour, Dégradé (2015), dos diretores palestinos Arab Nasser e Tarzan Nasser, Cinco Graças (2015), da diretora turca Deniz Gamze Ergüven, Nahid: Amor e Liberdade (2015), da diretora iraniana Ida Panahandeh, A Natureza do Tempo (2017) do diretor argelino Karim Moussaoui, Sofia (2018) da diretora marroquina Meryem Benm’Barek-Aloïsi, e em breve a ser lançado em circuito comercial, Adam (2019), da diretora marroquina Maryam Touzani. Nem todos esses filmes têm abordagem maniqueísta e reducionista.

Os filmes de países árabes não são os únicos a padecerem de estereótipos culturais locais. Muitos filmes contemporâneos latino-americanos (inclusive brasileiros), africanos e asiáticos, produzidos por países ricos, também sofrem deste mal. Mas, isto é assunto para outros artigos.